
No início de outubro eu fiz uma viagem por toda a filmografia do Rodrigo Aragão, um diretor capixaba que começou produzindo filmes independentes em 2008 e hoje é um dos maiores nomes do terror nacional. Conhecendo como minha mente funciona, eu sabia que isso não ia parar por aí. Logo, nas semanas seguintes eu expandi a maratona pegando alguns outros filmes brasileiros para assistir. Processo este que ainda está em andamento porque enquanto eu escrevia este texto acabei assistindo Ganga Bruta e Cabra Marcado Para Morrer. Além disso, tem uma aba com Uma História de Amor e Fúria no meu browser nesse exato momento.
Foi uma maratona modesta. Assisti um pouco mais de 15 filmes brasileiros*, sendo que boa parte deles eram do Rodrigo Aragão. Mesmo assim, consegui ver muita coisa diferente. Peguei desde clássicos dos anos 50/60 como o drama Rio, Zona Norte e o terror À Meia Noite Levarei a Sua Alma. Depois passei por algumas comédias oitentistas como Os Trapalhões no Auto da Compadecida e A Marvada Carne. Por fim cheguei em alguns filmes mais recentes como o terror As Boas Maneiras e a comédia infantil Chico Bento e a Goiabeira Maraviósa. Todos os exemplos citados configuram na minha listinha pessoal de filmes brasileiros para recomendar para quem tiver interesse em conhecer o cinema nacional. Este era um dos principais objetivos da minha maratona. Era…
*refiz as contas: já vi quase 30 de outubro pra cá!
Não posso dizer que minhas motivações eram inteiramente nobres, pois não pensei apenas na expansão do meu repertório cultural. Juntei essas referências também como uma forma de me preparar para futuras discussões que eu sei que em algum momento passarão pela linha do tempo. Eu brinco que toda vez que eu assisto um filme brasileiro que acabo gostando muito, eu anoto o seu título num papel, prendo numa pedra e a coloco dentro de um saco. Assim, quando alguém chegasse perto de mim e falasse que o cinema nacional é uma droga, eu pegaria esse saco e daria com ele com toda a minha força na cabeça dessa pessoa.
Isso surgiu muito tempo atrás quando eu tive meu primeiro impulso de conhecer filmes brasileiros. Foi assim que encontrei alguns dos meus favoritos como O Pagador de Promessas, O Lobo Atrás da Porta, Saneamento Básico: O Filme e O Palhaço. Só que algo aconteceu nessa segunda vez enquanto eu metaforicamente preenchia o saco com mais pedras. Eu percebi como aquele era um trabalho não exatamente inútil, porém meio ingrato. Recomendar filmes brasileiros, individual ou coletivamente, sempre vai alcançar alguém. Contudo, eu já não acho que seja capaz de reverter a impressão que o público tem do nosso cinema porque há uma predominância de uma mentalidade excepcionalidade em relação aos filmes brasileiros. Peço um cadinho de paciência pois levarei alguns parágrafos para explicar o que eu quis dizer aqui.
O cinema nacional enfrenta muitas dificuldades. Seja na produção dos filmes, seja na distribuição dos mesmos. Não vou fingir que entendo desses pormenores, então deixo para vocês procurarem as autoridades competentes nesse assunto. Eu só sei o suficiente para entender que é praticamente um milagre alguns filmes chegarem ao cinema da minha cidade. Dentre todos esses problemas existe também o preconceito que muita gente tem com o nosso cinema. Já até comentei sobre isso naquele meu texto de Toren, porque esse mesmo fenômeno se manifesta na comunidade gamer com o mesmo misto de ignorância com paranoia ideológica.
Tenho consciência que até agora eu apenas risquei a superfície da nossa produção cinematográfica. Entretanto, tudo que eu já vi foi o suficiente para me fazer reconhecer a quantidade de bobagens proferidas sobre os filmes brasileiros. Depois de algumas referências, fica fácil perceber como quem critica o cinema nacional NUNCA o consumiu de fato e apenas repete coisas que ouviu de outras pessoas.
Aqui precisamos apontar dedos, em geral é um pessoal com um posicionamento mais voltado a direita, tipo canalhas como Jurandir Gouveia, que tem uma visão bem torta do nosso cinema. Pois existe um problema de identidade nessa galera. Apesar de nascerem brasileiros, muitos se identificam como norte-americanos (e alguns japoneses). Assim eles criam um real desprezo por tudo que envolve a nossa cultura, ainda mais por acharem que ela foi dominada pela esquerda só porque tem um monte de artista que vota no Lula. Mesmo assim não dá para ser leviano e colocar tudo no colo da direita, porque boa parte do público nem sabe para que lado cai. O preconceito com filmes brasileiros é muito mais generalizado e independe do seu consciente ou não espectro político.
Só para exemplificar, poucas semanas atrás passou um tweet na minha linha do tempo de alguém citando aquele filme Caramelo e dizendo: “Se tirar ditadura militar, sexo e cachorro caramelo não sobra nenhum tema pra fazer filme no Bostil“. Podemos discutir se esse é um comentário sincero ou apenas mais um ragebait de rede social, mas de qualquer forma essa é uma narrativa que eu já vi ser repetida à exaustão.
Dá para destrinchar esse simples comentários em várias partes, contudo vou me focar no sexo (eita bixo kkkkkkk). Essa ideia de que no cinema brasileiro só tem sacanagem é só uma generalização besta de quem já ouviu falar das pornochanchadas. Você pode tratá-las como um gênero ou um movimento cinematográfico, o mais importante é entender que eram filmes que exploravam temas eróticos. Você tinha de dramas como A Dama do Lotação e comédias como Histórias Que Nossas Babás não Contavam e houve uma extensa produção desses filmes.
Todavia, um detalhe que essa galera esquece de mencionar é que as pornochanchadas são um recorte específico de uma época específica da história do nosso cinema. Elas surgiram influenciadas por mudanças culturais da década de 70, tal como o controle que a ditadura militar exercia na produção cultural como um todo. A partir dos anos 80 as pornochanchadas entraram em declínio, além de perder espaço para a pornografia hardcore que foi abocanhando esse mercado. O agora mais conhecido como meme do que filme, Um Pistoleiro Chamado Papaco, por exemplo, surgiu num período que as pornochanchadas passaram a conter sexo explícito para ter uma sobrevida.
Achar que filmes brasileiros que só tem sexo (como se isso fosse um problema) é um eco do passado repetido por gente que não entende nada do que está falando. Mas não para por aí. A ideia do texto surgiu graças ao Guilherme Lima, o paladino do cinema nacional da juventude cinéfila do Twitter. Meses atrás ele chamou atenção com dois vídeos nos quais criticava o tratamento que alguns youtubers que falam de cinema davam aos filmes brasileiros. No geral, eu concordo com o espírito da crítica ainda que eu acho que Guilherme mais erra do que acerta. Muitas vezes parece que ele só quer implicar com seus desafetos, esvaziando a defesa sobre o cinema nacional*. Mas nesse aspecto eu não estou em posição de criticar ninguém. Por isso que no segundo ele se saiu bem melhor, ao meu ver, do que no primeiro.
Recomendo assistir vídeo depois, por enquanto eu queria só aproveitar um trecho logo no início. Nele aparece o execrável Cross, um do apresentadores do Flow Games, dizendo que o cinema nacional é ruim pelo critério “a porra do filme do Danilo Genitili”. Chuto aqui que ele se refere ao besteirol de Como se Tornar o Pior Aluno da Escola, filme que o Danilo Gentili produziu e roteirizou. Pois bem, que o Cross é um ignorante todo mundo já sabe! Ele mal entende de vídeo game, então não tem como esperar que ele entenda algo de filmes brasileiros. Só que, novamente, esse discurso que ele repete vem do mesmo lugar que aquele tweet que citei.
Não tem nem muito que elaborar. Julgar o cinema nacional por um filme do Danilo Gentili, ou então um daqueles crimes cinematográficos que saem todo ano com o Leandro Hassum, seria o mesmo que julgar o cinema americano por besteiróis como American Pie, os filmes da produtora do Adam Sandler ou as coisas que a Joey King escolhe participar. É um atestado de ignorância de quem não tem muito repertório para sustentar sua opinião e por isso só consegue produzir as generalizações mais fracas. Isso vale para outras variações desses comentários que costumam apontar também que filmes brasileiro só sabem falar de favela, ditadura ou Nordeste.
É uma narrativa tão infundada que nem precisa de muito para desmistificá-la. Só naquela singela maratona eu consigo trazer contraexemplos:
- O Menino e o Mundo: uma animação que mostra a percepção de um garoto sobre o mundo ao seu redor onde se discute o êxodo rural, a violência e desigualdade social nos grandes centros urbanos, a exploração do trabalho, etc;
- Abraço de Mãe: um filme de terror com requintes de um horror cósmico lovecraftiano sobre uma bombeira tentando lidar com o trauma da morte da sua mãe;
- Os Enforcados: um thriller que funciona como releitura moderna de Macbeth, contextualizando a história no império do jogo do bicho carioca;
- Oeste Outra Vez: um neo western goiano sobre homens incapazes de lidar com a solidão que recorrem a violência uns com os outros e gerando um ciclo eterno de autodestruição.
Aí a gente volta naquela questão que eu abri lá no começo. Embora parece que falta referência para essa galera – e até certo grau é isso mesmo – ainda existe um problema mais profundo. Porque até mesmo quem tem um preconceito crônico com o cinema nacional vai ter sua listinha daqueles filmes que considera bom. É bem provável que essa lista contenha um ou todos os títulos do famigerado “Big Three”: O Auto da Compadecida, Cidade de Deus e Tropa de Elite. Depois de 2024, eu passei a colocar Ainda Estou Aqui no conjunto também. Isso é um pouco triste porque de fato são ótimos filmes, mas acabam se tornando memes por serem sempre os mesmos exemplos que algumas pessoas utilizam.
Eles acabam ilustrando essa mentalidade vira-lata que trata o cinema nacional com um prisma de excepcionalidade. Mas notem que não é apenas no sentido de serem filmes de qualidade, mas também no sentido de serem as exceções. Temos mais de um século de história de filmes brasileiros, mas essa gente acredita que foram esses poucos títulos – todos dos anos 2000 para frente – que conseguiram a façanha de serem bons. Dependendo da pessoa pode até ter mais alguns exemplos. Um amigo meu costumava citar Lisbela e o Prisioneiro com um dos “únicos filmes brasileiros bons”.
Mas não se atentem tanto assim aos objetos e sim a lógica por trás deles. Tais pessoas já se convenceram que o cinema nacional é de péssima qualidade mesmo sem conhecê-lo de verdade. É por isso que eu não acho que apenas trazer bons exemplos vai resolver o problema dessas pessoas porque elas irão tratá-los como meras exceções. O mais irritante é que esse pensamento convenientemente não se aplica no sentido oposto. Quando essa mesma gente vê um Transe ou Uma Advogada Brilhante, eles não encaram como apenas exemplos ruins que todo cinema no mundo tem. Nesse caso, tais filmes viram a regra que valida o preconceito que tais pessoas já carregavam.
Isso não parte apenas do público, pois os criadores de conteúdo também contribuem na perpetuação dessa mentalidade. Aqui eu tenho que dar razão para o tom vexatório dos vídeos do Guilherme Lima. Se você jogar Os Enforcados agora no YouTube os únicos canais maiores que você encontrará falando sobre esse filme é o da Isabela Boscov, do Waldemar Dalenogare e do Lucas Maia (Refúgio Cult) que fez um vídeo dias atrás. Somando os três não chega a dar mais de 100 mil visualizações.
Agora digitem aí Internet: O Filme ou qualquer outra comédia brasileira mal falada. Você encontrará muito mais canais comentando sobre esses filmes que individualmente já ultrapassam os vídeos da Boscov, do Dalenogare e do Lucas. Só o vídeo do Seijinho tem mais de dois milhões de visualizações. Eu entendo que falar mal de algo, seja esse algo bom ou ruim, atrai muita atenção. Não é à toa que vídeos dos PIORES filmes do ano costumam ter mais visualização do que os MELHORES filmes do ano. O problema é que no contexto do cinema nacional, isso acaba transmitindo uma ideia errada e propagando uma síndrome de vira-lata com nossos filmes.
Você tem dúzias de canais brasileiros que falam o tempo todo dos filmes americanos. Falando bem, falando mal, porém falando. Agora quando os mesmos escolhem para falar de um filme nacional, quase sempre eles escolhem um com o propósito de falar mal. Até o “Big Three” não é tão comentado quanto as comédias pastelonas padrão Globo Filmes. O canal do Bento Ribeiro é basicamente isso. Dá para contar nos dedos os filmes brasileiros que ele veio elogiar, enquanto o conteúdo é saturado dessas comédias porcas. Aí depois ele vai se valer do personagem que criou, Chapado Crítico, afinal a ironia é sempre o escudo do covarde. Ele até pode achar que é tudo piada, mas o público recebe isso de outra forma. Não é à toa que gente como o também execrável Mamãefalei concorda com as asneiras supostamente irônicas que ele diz.
Outros youtubers que falam de cinema com certa frequência seguem essa mesma linha. O que não falta é canal falando dos mais variados filmes americanos de diferentes qualidades e gêneros. Porém quando chega a vez dos filmes brasileiros, quando não é um que acabou se mostrando bem popular como o caso recente de Homem com H (que eu ainda acho que foi pouco comentado), é um filme já conhecido por ser ruim. Gostem eles ou não, isso é o que vai contribuir para manter essa mentalidade de exceção, porque faz parecer que termos um bom filme brasileiro é um evento incomum e não algo que acontece todo mês longo dos olhos público médio.
Não estou aqui para ditar que os criadores de conteúdo passem a falar de cinema nacional com mais regularidade. Eles já se tornaram tão reféns do algoritmo que farão um vídeo até para um M3GAN 2.0 em vez de, sei lá, O Último Azul. Adoraria que os mesmos caras recomendarão para você ir ao cinema assistir o novo filme do Chainsaw Man tivessem falado para você ir ver Mundo Proibido, mas realisticamente isso nunca vai acontecer. Mundo Proibido provavelmente nem passou em 90% das salas de cinema brasileiras. Tudo que eu gostaria é que tratassem o nosso cinema com o mínimo de respeito e não dar mais combustível para essa mentalidade vira-lata de achar que só tiveram quatro filmes brasileiros excepcionais – em ambos os sentidos – nessas últimas décadas.




