A ironia trágica de Lufia II: Rise of the Sinistrals

Alguns meses atrás eu decidi fazer uma lista recomendando alguns JRPGs. Porém, devido a uma série de restrições que eu me obriguei a seguir, acabou que faltava um jogo para fechar os 25 itens. Pensando um pouco, eu decidi usar a oportunidade para tirar algum JRPG da minha lista de pendências. Foi assim que fui parar em Lufia & the Fortress of Doom, um joguinho de 1993 que até então eu só conhecia vagamente pelo nome. Era um risco, afinal se eu não curtisse ia ter que atrasar a lista por não sei mais quantas semanas. Felizmente no final deu tudo certo e eu gostei bastante de Lufia. Tanto que acabei jogando sua sequência logo em seguida, porém não vamos nos adiantar.

Eu sou suspeito de falar, porque JRPGs do Super Nintendo têm um charme especial para mim, então é fácil de eu gostar de qualquer um. Mas no caso de Lufia & the Fortress of Doom o que me cativou foi entender o que o jogo se propunha a fazer. Acredito que a maioria que pegá-lo para jogar hoje sem qualquer contexto tem altas chances de achá-lo frustrante. Os personagens se movem devagar e no combate replicam uma característica dos JRPGs mais antigos de Dragon Quest e Final Fantasy. Se você colocar dois personagens para atacar o mesmo monstro e ele for morto pelo primeiro, o segundo irá errar em vez de mudar automaticamente para o outro alvo. Tudo isso são escolhas intencionais do Masahide Miyata que tratou Lufia & the Fortress of Doom como uma homenagem aos JRPGs do final da década de 80 que ajudaram a estabelecer esse nicho.

Batalha por turnos da série Lufia

Portanto, não espere ver em Lufia qualquer coisa muito diferente dos jogos que vieram antes dele. O que pra mim não é um problema porque eu acho cansativo esse fetiche por uma suposta inovação. É um JRPG com combate por turnos indo muito na onda de Dragon Quest com encontros aleatórios e aquela vista frontal clássica. Para mim o que o jogo tem de mais especial é o carisma do elenco principal. Sobretudo a relação que se constrói entre o Herói e a titular Lufia que fica se equilibrando entre momentos de comédia e romance.

Depois de zerar The Fortress of Doom e terminar a lista, eu resolvi dar ouvidos à plateia. Um seguidor no meu abandonado perfil do Bluesky me sugeriu jogar a sequência, Lufia II: Rise of the Sinistrals, que segundo ele era ainda melhor que o primeiro. Por curiosidade eu pesquisei um pouco sobre o jogo para saber quais tinham sido as mudanças de gameplay. Senti que havia potencial ali e então resolvi dar uma chance para Lufia II. De fato ele é muito melhor que o primeiro em vários aspectos.

O combate ainda segue por turnos, porém mexeram um pouco na dinâmica das batalhas. Os personagens tem uma nova barra de Ikari Points (IPs) que se preenche cada vez que você recebe um ataque. Os IPs são gastos ao utilizar habilidades especiais dos seus equipamentos. Além disso, Lufia II opta por remover os encontros aleatórios – nas dungeons, isso ainda acontece no mapa-múndi – e iniciar as lutas quando você encosta num monstro ou vice-versa. Assim você tem a chance de começar a batalha com um turno de vantagem ou então ser pego de surpresa, além de ter mais agência em explorar as dungeons sem precisar engajar em combates repetitivos a não ser que você queira ou se distraia. Por fim, você consegue monstros que servem como um quinto membro da equipe para te ajudar nas batalhas.

Maxim usando o gancho para atravessar um buraco no chão

Contudo, o que mais muda em Rise of the Sinistrals é que ele resolve buscar referências agora no gênero de aventura como The Legend of Zelda. Ao longo da gameplay você encontra diferentes ferramentas como arco e flecha, gancho, bombas, etc; que servem para abrir passagens, incapacitar monstros ou destruir objetos. Dessa forma, temos aqui um jogo com muito mais ênfase em puzzles para que as dungeons não se limitem a uma entediante caminhada com lutas consecutivas. Alguns dos puzzles são bem simples, mas volta e meia Lufia II consegue trazer um bom desafio mental. E não vamos falar sobre o “World’s Most Difficult Trick” que eu ainda estou com raiva dele.

Mas como alguns dos mais antigos no blog talvez saibam, não é exatamente jogabilidade que enche meus olhos. “Ah, mas vídeo game é midia interativa e…”, sim, eu estou ciente. Continuo gostando mais de uma boa narrativa do que de uma boa jogabilidade e é por isso que eu ainda tolero Rule of Rose. Enfim, chega de discutir com as vozes na minha cabeça e ir para o que interessa. Para isso preciso fazer um retorno a The Fortress of Doom porque não falei da sua trama.

No mundo de Lufia – o jogo e também a personagem – existe uma profecia sobre os Sinistrals. São quatro seres divinos que ressuscitam de tempos em tempos e tentam dominar o mundo. Os eventos de The Fortress of Doom “começam” com o surgimento do primeiro Sinistral, Gades, que lança um ataque a uma cidade próxima a terra natal do Herói, o protagonista do jogo. Ele então parte numa jornada para impedir a volta dos Sinistrals, acompanhado da sua amiga de infância Lufia e depois mais dois personagens, o guerreiro Arguro e a elfa Jerin.

É uma das tramas mais comuns desses JRPGs medievais e a sequência repete a mesma história conhecida, só que em mais de um sentido. Não tem como falar de Lufia II: Rise of the Sinistrals sem entrar no território dos spoilers, porém não sei nem se qualifica nesse caso já que The Fortress of Doom nos entrega o desfecho. Usei aspas no parágrafo anterior, porque os eventos do jogo iniciam na verdade em outra história.

Cena the Lufia II: Rise of the Sinistrals que recria um momento mostrado anteriormente no primeiro jogo, Lufia & The Fortress of Doom

Os primeiros 10 minutos mostram um outro grupo de guerreiros quase um século atrás lutando contra os Sinistrals. O grupo é liderado por Maxim, antepassado do Herói de The Fortress of Doom, e inclui a sua esposa Selan, Guy e o elfo Artea. Os quatro conseguem derrotar os Sinistrals combinando suas forças com a espada lendária Dual Blade. Entretanto, Selan fica gravemente ferida pelo choque do último ataque dos vilões ao mesmo tempo que a ilha flutuante onde fica o covil deles começa a cair. Maxim decide ficar para trás para morrer junto da sua esposa e pede para Guy e Artea escaparem. O casal então afunda junto com a fortaleza no oceano.

Logo, Rise of the Sinistrals decide expandir esses dez minutos para um jogo completo contando toda a jornada de Maxim e seus companheiros. Se não estou enganado, esse lance das prequels ainda não era muito comum no início da década de 90. Pelo menos não nos vídeo games, porque nos JRPGs o único exemplo que me vem à cabeça é Dragon Quest III: The Seeds of Salvation que é de 1988. Quem souber de mais exemplos, por favor, jogue aí nos comentários. Então dá até pra dizer que era algo ousado a se fazer naquele período.

Para alguns isso pode tirar a graça da trama ao saber previamente como ela vai terminar, mas isso é pensar histórias apenas pelos seus fatos e ignorar como a narrativa mexe com você. Portanto, Rise of the Sinistrals se utiliza do nosso conhecimento prévio para transformar o jogo num exemplo de ironia trágica. Na ficção existe o conceito de ironia dramática que é quando a audiência possui informações que os personagens não têm, aumentando a carga dramática e o suspense por trás de cada ação por sabermos as consequências que irão gerar. Logo, a ironia trágica é quando essas ações levarão a uma tragédia como a morte do casal protagonista. Romeu & Julieta é talvez o exemplo mais popular dessa forma de ironia.

Então, quando começamos Rise of the Sinistrals a gente já sabe de três detalhes importantes sobre Maxim e Selan: em algum momento eles irão se apaixonar, eles terão um filho e que ambos irão morrer no final do jogo. Porém a ironia trágica não se manifesta apenas em sabermos do destino dos personagens, isso também causa efeito na relação deles com o restante do elenco.

Balão de pensamento de Tia que está apaixonada por Maxim e não tem seus sentimentos correspondidos

Selan só entra na história a partir de um terço mais ou menos de Lufia II. No começo, Maxim faz par com sua amiga de infância Tia que vemos claramente estar apaixonada por ele. A relação deles é quase um espelho do Herói com Lufia em The Fortress of Doom pois as personalidades são parecidas, porém sabemos como isso vai terminar. O jogo não está construindo outro triângulo amoroso como fizeram com o Herói, Lufia e Jerin. Existe um drama ali, mas que vem do fato de sabermos que a Tia inevitavelmente acabará com o coração partido, sempre dando uma pena de vê-la tentando expressar seus sentimentos pelo Maxim.

A ironia trágica de Rise of the Sinistrals também serve para intensificar alguns momentos. Na primeira metade da história o Gades é o principal antagonista porque os personagens não têm ciência dos outros Sinistrals. Então quando ele é derrotado, cria-se uma falsa sensação de paz. Maxim e Selan se casam e têm um filho, Jeros. Um pouco depois do nascimento dele, Jeros é sequestrado por um dos capangas dos Sinistrals e você tem que ir resgatá-lo. Naturalmente já existe um investimento emocional da nossa parte, afinal é o filho dos protagonistas. Mas essa carga aumenta porque como os pais dele irão morrer no final do jogo, Jeros é a única forma de garantir que a linhagem do Maxim continue até o Herói de The Fortress of Doom.

Percebam, a certeza que de como Rise of the Sinistrals vai terminar não deixa a trama menos interessante. Justamente por termos a noção do destino dos personagens que as ações deles ganham um peso maior. Tem um diálogo entre o Maxim e Selan no final que ele tenta convencê-la de ficar na cidade e não ir com o restante do grupo enfrentar os Sinistrals que serve quase como o jogo indicando que de alguma forma ambos sabem que não vão voltar. São heróis trágicos.

Então no fim acho que Lufia II: Rise of the Sinistrals serve como um bom argumento contra essa paranoia do spoiler que assombra a internet. Claro que existem algumas histórias que é melhor você vir às cegas, mas isso não é uma regra. Uma narrativa cativante consegue se sustentar mesmo se você tiver ciência dos fatos. A maioria aqui deve saber DAQUELA cena em The Last of Us II. Isso a torna menos impactante quando você a vê? Não! Porque a… execução da cena e a performance dos personagens, bem como os efeitos que ela cria para a narrativa do jogo, ainda te afetam da mesma forma. Talvez até se torne melhor, porque assim como os personagens de Rise of the Sinistrals, é o destino trágico que te faz se importar com eles ainda mais.

Cena de final de Lufia II: Rise of the Sinistrals, com a babá de Jeros, filho dos protagonistas, segurando o bebê após a morte de seus pais
Vacilo, jogo! Que vacilo…

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