Em 2018 conheci o que se tornaria um dos grandes filmes de terror da minha vida vida: Mandy. Eu nunca tinha ouvido falar do seu diretor, Panos Cosmatos – que nome maravilhoso – e menos ainda conhecia o “gênero” específico de cinema que ele representava. Além da incrível atuação do Nicolas Cage, que nos faz lembrar que ele é de fato um excelente ator quando não tenta ser um meme ambulante, também adorei a cinematografia de Mandy. O filme faz muito uso de cores fortes e, junto da trilha sonora, cria essa atmosfera de se estar preso entre uma trip louca de ácido e um pesadelo desolador.
Então Mandy foi meu primeiro contato, ao menos meu primeiro contato consciente, com o chamado terror psicodélico que é uma das variações do cinema psicodélico. Esse é um termo que acredito ser pouco difundido fora do cinema mainstream. Para explicá-lo eu vou tomar as palavras do romancista James Riley no artigo “Everything you need to know about psychedelic cinema“:
O termo não descreve um “movimento” ou um grupo específico de cineastas, mas aborda o surgimento de um estilo visual particular no cinema de terror britânico e americano; a absorção de técnicas da contracultura que eliminam as sombras escuras estereotipadas do gênero com faixas de luz estranhas e vívidas
Uma das características do horror psicodélico, e do cinema psicodélico em geral, é usar de distorções visuais e técnicas experimentais tanto de narrativa quanto de edição para transmitir ao espectador a sensação de perder contato com a realidade. Panos Cosmatos – novamente, que belo nome – utiliza isso muito bem em Mandy e também no episódio “The Viewing” de O Gabinete de Curiosidades que ele dirigiu recentemente.
Caçando um exemplo para os vídeo game, temos um dos jogos indie de maior sucesso até hoje: Hotline Miami. Com uma estética oitentista, tanto nos seus visuais quanto trilha sonora, e com o uso de temas como ultraviolência, drogas e narrativa surrealista, a atmosfera de Hotline Miami é recheada desses traços de psicodelia como Mandy.
Eu não sei até quando isso foi uma escolha consciente do desenvolvedor de jogos, Jonatan Söderström. Contudo o resultado foi de uma das melhores experiências de terror psicodélico que poderíamos encontrar para jogos. O próprio menu inicial do jogo já transmite esse sentimento de um estado alterado de consciência. Isso se torna mais evidente no tutorial onde o jogo adiciona uma camada mais terrível, com o uso de sombras e distorções sonoras, que mostra o estado mental do protagonista que será nosso ponto de vista dessa história.
Hotline Miami foi um tremendo sucesso na época do seu lançamento e foi um dos indies de maior influência para a década de 2010. No final dela surge um outro indie que é inegável não teve alguma inspiração de Hotline Miami: Katana Zero. Por causa da temática de drogas e trechos da trilha sonora que eu ouvi, eu imaginei que o jogo também teria muito desse lado psicodélico na sua gameplay.
Mas para ser sincero, o Katana Zero é bem sóbrio nesse aspecto. A sua direção artística parece estar muito mais alinhada com a estética retrô de vários outros jogos indie do que qualquer outra coisa. Felizmente, quando a trama avança, vemos o jogo tangenciar cada vez com mais frequência uma espécie de terror psicodélico misturado psicológico. Isso abre espaço para uma discussão mais interessante do que apenas a avaliar jogabilidade.
Então partindo dessa perspectiva, tenho bastante coisa pra falar de Katana Zero hoje!
KATANA, DROGAS E SYNTHWAVE
Em Katana Zero você controla o protagonista Zero que, bom, tem uma katana. Ele é um veterano de guerra que sofre de amnésia e trabalha para um misterioso sindicato que o manda em missões para assassinar traficantes. As missões são entregues ao protagonista através do seu psiquiatra, que também está a serviço dos figurões desse sindicato, após suas sessões diárias que culminam com Zero recebendo uma dose de uma substância desconhecida.
Como jogo, Katana Zero funciona segundo um jogo de plataforma 2D de ação, com excelentes gráficos pixelizados e uma trilha sonora ainda mais fantástica baseada no synthwave. Essa direção artística somada a escolha de inserir tecnologias mais antigas como fitas VHS no universo do jogo reforçam a estética retrô de Katana Zero. Com uma estrutura de fases que se desenrolam num período de dez dias, o objetivo do jogo é passar por diversos cenários eliminando todos os inimigos que se encontram no mapa e evitando algumas armadilhas. Aqui ele aplica a mesma fórmula de “matar ou morrer” de Hotline Miami. O protagonista não tem uma barra de vida então um único hit e você terá que reiniciar a fase.
Além da sua grande agilidade e destreza com a katana, Zero possui habilidades de precognição e de alterar a percepção do tempo. Ou, em palavras menos pedantes, ele consegue ver o futuro e entrar em modo Zack Snyder. Isso estabelece um aspecto curioso da jogabilidade porque quando temos controle do Zero nós estamos na verdade jogando uma das suas visões. À primeira vista isso é uma forma de criar uma justificativa dentro do universo do jogo para a existência os resets. Isso chega até ser referenciaod por mais de um personagem em algumas passagens da história. E mais a frente vemos que isso ganha um outro significado mais profundo dentro da narrativa de Katana Zero, então peço paciência.
Se parece que eu corri um pouco em descrever a jogabilidade de Katana Zero saibam que é intencional. Eu não dou a mínima para a gameplay dele. E não falo isso como demérito. É simplesmente porque, como eu já mencionei num outro artigo, geralmente eu me pego curtindo muito mais os outros aspectos do jogo como a sua narrativa, estética e/ou ambientação. Katana Zero não foi exceção!
Então embora eu ache que ele funciona muito bem como um plataforma de ação que talvez possa frustrar um pouco pelo fator de tentativa e erro, não esperem uma análise mais aprofundada de jogabilidade aqui. Tudo que me interessa é a leitura que eu tirei a partir de seu temas sobre violência, trauma e negação da realidade.
Esse último tema é o que mais me chama atenção porque é ele que abre espaço para os traços de terror psicodélico que vão se embrenhando na história uma vez que a trama ganha tração.
AS LACUNAS NECESSÁRIAS DE KATANA ZERO
Entre críticas e comentários que eu vi sobre Katana Zero, uma reclamação recorrente – quando a pessoa não queria apena se sentir muito espertona dizendo que o jogo era um Hotline Miami side scroller – foi acerca da história. Isso porque existem muitas pontas soltas na narrativa e o criador do jogo, Justin Slander, já revelou planos para uma DLC que explicaria algumas delas, embora não todas.
E honestamente eu prefiro que essa DLC nunca saia!
Esse não sou eu tentando criar uma hot take, irei justificar minha visão. O próprio criador do jogo já disse que nem todas as particularidades da história serão explicadas. Isso mostra que ele entende o quão necessárias são essas lacunas para a narrativa de Katana Zero ter mais efeito.
Grande parte do jogo segue um padrão. Zero acorda de um pesadelo que parece ser uma memória reprimida, vai para sua sessão com o psiquiatra, recebe a sua próxima missão e uma dose da substância misteriosa que eu já mencionei. Depois da missão, Zero retorna para seu apartamento onde desenrola uma subtrama na qual ele passa a criar uma amizade com uma garotinha que mora no apartamento ao lado. Claro que eu estou deixando passar muita coisa que acontece entre e depois das fases. Mas por enquanto quero focar no que me parece mais importante.
A cada fase o jogo se torna progressivamente mais sombrio com os novos detalhes adicionados a esse universo. Só que nunca o bastante para entendermos ele completamente. Por exemplo, uma tal guerra entre New Mecca, lugar onde se passa a história, e uma região chamada de Cromag são constantemente mencionadas. Aliás, há uma óbvia inspiração na Guerra do Vietnã ali. A ação de New Mecca na guerra é muito criticada, tal como aconteceu com os EUA, pelo fato de crianças terem sido mortas durante o conflito. Os sonhos de Zero dão a entender que, embora é dito que ele foi um soldado que lutou nessa guerra, talvez ele fosse uma dessa crianças que escapou do massacre. Mas estamos nos adiantando.
Mais a frente nós também ficamos sabendo sobre a natureza da droga que injetam em Zero: Chrono. Ela é a responsável por dar as habilidades de precognição ao protagonista. Ao mesmo tempo constrói-se a lenda da figura misteriosa de um assassino chamado de O Dragão, que a princípio pensava-se que era o Zero. Já nessa parte, além dos pesadelos, Zero passa a ser atormentado por duas figuras mascaradas. Fica em aberto se são apenas constructos da sua mente ou se de fato são entidades capazes de afetar a realidade. Eu acredito na primeira opção.
Enfim, o jogo prossegue levantando várias perguntas, mas não dando todas as respostas. E eu acho bom que seja assim!
Existe essa mania em exigir que tudo na ficção seja devidamente explicado. Ao longo dos anos eu passei a detestá-la mais e mais. Nem tudo dentro de uma obra precisa ficar totalmente esclarecido porque um certo grau de abstração e subjetividade faz parte da experiência. E a partir do momento que a gente acompanha a história na perspectiva de um protagonista que sofre de amnésia e também está sobre os efeitos de uma droga capaz de alterar a sua percepção do tempo faz todo sentido que existam esses “buracos” na história.
Não ter acesso a todas as informações pode não ser satisfatório para uma audiência acostumada a ter todas as respostas mastigadas para ela. Porém é isso que torna a narrativa de Katana Zero mais instigante dando mais espaço para interpretações por parte do jogador.
DESSENSIBILIZAÇÃO E FUGA DA REALIDADE
Katana Zero é um jogo bem violento com um gore visceral. Membros são constantemente decepados, cabeças explodem, é sangue para todo lado. Mas Zero, nosso protagonista, não se importa muito com isso. Do começo ao fim ele não parece se afetar tanto por toda violência que testemunha e também a que promove. Ele é a pessoa que entra numa prisão na qual presos e vigias foram brutalmente assassinados e sai andando como se fosse uma quarta-feira.
As demonstrações de quanto Zero está dessensibilizado com a violência são constantes. Bom, mais ou menos. Acontece que os momentos em que ele mostra alguma compaixão são tão esparsos que é capaz de você ignorá-los e focar só nos exemplos em que o personagem age com indiferença.
Na missão da prisão, por exemplo, se você conseguir passar pelo estágio sem matar um policial isso levará a uma cutscene onde o Zero mata a sangue frio um mendigo que supostamente é um ex-veterano da guerra de Cromag. E essa não é nem a única vez que vemos o Zero atacar pessoas que não sejam capangas dos traficantes. Além disso, algumas diálogos abrem a possibilidade que o protagonista não mata apenas por causa dos contratos e sim porque ele gosta de verdade de matar.
Por outro lado, quando Zero recebe um filme snuff de um cara chamado V torturando e matando os seus vizinhos drogados, o personagem não dá nenhuma reação. Porém, mais a frente quando você encontra o V você pode até condená-lo pelas suas ações através das opções de diálogo já que esse personagem leva a ultraviolência a outro nível.
Aqui entra em outra reclamação que eu me deparei sobre o jogo que é o fato das escolhas nos diálogos não alterarem o curso da história. O que é só uma baboseira gamer – e eu falo isso com todo desprezo mesmo – que acham que tudo precisa seguir as regrinhas que eles inventaram na cabeça. Se tem escolha de diálogo, tem que ter vários caminhos, né? Não, afinal o motivo dessas escolhas é fazer você, o jogador, mudar a sua percepção a respeito da personalidade do Zero. Porém eu vou mais além e diria que essas escolhas representam outra característica importante do protagonista: a sua constante tentativa de evitar a realidade.
Há dois detalhes que acontecem ao curso de uma missão, um logo no início da fase e outro no final. A música que ouvimos durante as fases é na verdade diegética. Ou seja, o personagem também a escuta porque ela está inserida dentro da ficção e não é apenas para nós, a audiência. Isso fica óbvio pela animação do Zero colocando fones de ouvido e dando play no que parece ser um aparelho walkman já que o jogo segue nessa linha retrô. Ou seja, enquanto Zero está matando hordas e mais hordas de bandidos e policiais (que nem sempre são mutualmente exclusivos) ele escuta descontraidamente algumas faixas de synthwave.
Findada as fases, Zero volta ao seu apartamento onde o jogador tem possibilidade de duas interações: tomar chá e ligar a televisão. Ao realizar a segunda, a primeira coisa que passa na noite é a notícia relatando as mortes promovidas pelo protagonista. Novamente não há muita reação dele ao ouvir as atrocidades que cometeu, vira apenas barulho de fundo. Só que eu não acho que isso seja uma evidência de apenas como o personagem está dessensibilizado para a violência. Para mim ele só está tentando ignorar as suas ações e a possibilidade que ele talvez realmente goste de matar e só usa o trabalho para o sindicato como uma desculpa. E assim ele tenta primeiro se distanciar da violência e, quando fica muito evidente, ele tenta fugir da realidade por completo.
Mas aí entra a garotinha na vida dele!
ATENÇÃO
O próximo tópico contém muitos spoilers sobre o desfecho do jogo. Caso não tenha interesse, pode pular direto para a conclusão.
O PESADELO DE ZERO
A garotinha é um personagem sem nome que nos é apresentado, no início do jogo, quando Zero volta de uma missão. Ela e seu pai se mudaram para o apartamento do lado e logo ela passa a desenvolver uma relação meio de pai e filha com Zero. A narrativa utiliza a personagem para fazer o protagonista questionar seu sonhos, pois vemos a presença da silhueta de uma segunda criança neles brincando com Zero. O que dá a entender que ele tinha uma irmã e a garotinha o faz se lembrar dela.
Só que não é bem isso.
Conforme Zero se lembra de mais detalhes dessa memória, nossas premissas vão sendo quebradas. A figura que pensávamos ser um agressor, na verdade era um inocente cientista que é morto na frente de Zero. Então um quarto personagem misterioso, o verdadeiro agressor, é inserido na história. Logo também a suposta irmã é revelada como uma falsa memória e que na verdade era somente um dinossauro de brinquedo com o qual Zero brincava antes de presenciar a morte do cientista. E com o tempo esses pesadelos vão se misturando com a realidade.
É justamente nessa parte em que o terror psicodélico passa a ser mais presente no jogo. Efeitos visuais se tornam mais constantes, mostrando o estado de confusão mental (e temporal) em que Zero vive. Logo ele também passa a ter visões dos seus vizinhos mortos que usam as máscaras do teatro grego representando Comédia e Tragédia. E o que é interessante notar aqui é que a realidade vai se deteriorando conforme o laço entre Zero e a garotinha vizinha se fortalece.
Muita coisa vai acontecendo nesse meio tempo, desde Zero descobrindo um grupo de rebeldes que quer se vingar do governo da Nova Mecca pelo desenvolvimento de Chronos até o aumento da sua desconfiança com o sindicato para qual ele trabalha, representado pelo psiquiatra, que culmina em Zero matando-o ao perceber que seu sonho era de fato real. E aí que vem as grandes revelações do jogo.
Algo que provavelmente os jogadores já suspeitavam é comprovado quando Zero retorna ao seu apartamento depois da última missão. Ele encontra a polícia investigando o assassinato do pai da garotinha. Mas quando ele questiona se os policiais a viram em algum lugar é dito que o vizinho morava sozinho. Ou seja, Zero esteve esse tempo imaginando a menina. Desesperado, ele sai correndo não querendo admitir que ela não passava de uma ilusão.
O que a garotinha representa vai da interpretação de cada um. Para mim ela é uma tentativa de Zero retomar sua humanidade, que seria indicado por uma das visões dele com Comédia e Tragédia em que um deles diz que não sabia que Zero ainda tinha uma consciência. Mas independente do que a garotinha representa, ela serve como o maior exemplo de que Zero está constantemente fugindo de alguma coisa. E durante todo o texto eu bati na tecla da realidade, só que ao fim do jogo não é bem isso que assusta o personagem.
Após correr da polícia nós vemos uma última sequência que mostra aquela memória de Zero como ela de fato aconteceu. E aqui nós temos uma revelação final, o verdadeiro plot twist da trama, ao descobrirmos que Zero não era a criança, mas próprio soldado que matou o cientista. Zero esteve esse tempo todo se colocando no lugar da vítima, mesmo sabendo que ele é um veterano de guerra e assim não havia a possibilidade dele ter aquela idade quando a guerra aconteceu. Dessa forma ele não teria que admitir para si que provavelmente foi um dos principais agentes na morte das crianças durante a guerra.
Com essa informação, vamos refletir um pouco sobre a jogabilidade de Katana Zero, apesar de eu ter afirmado que não me importo muito com ela. Ao contrário de um Prince of Persia: Sands of Time, Zero não volta no tempo para corrigir um erro. Ele usa sua habilidade para prever o futuro e assim tomar as decisões que levarão ao melhor resultado possível. A implicação aqui é que o personagem está constantemente olhando para frente. E o grande motivo para isso é que, simbolicamente, ele não pode olhar para trás porque isso vai levá-lo a encarar seu grande pesadelo: o seu passado.
CONCLUINDO
Por questões de estética não dá para gente dizer que Katana Zero é mais um expoente do horror psicodélico na mídia dos jogos. Na maior parte do tempo ele é sóbrio, ainda que luzes fortes e mais estilizadas estejam presentes em boa parte da construção dos seus cenários e até nas animações dos personagens.
Porém vemos que o jogo vai aos poucos tangenciando esse campo ao longo da sua gameplay, combinando com a sua narrativa que mostra que o personagem não está sempre na realidade. Há muita ação em Katana Zero, animações e uma trilha sonora fenomenais, mas são os temas dele que, pra mim, roubam os holofotes e que justificam a experiência desse excelente indie.
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