O primeiro texto da minha série Game Cuts que saiu aqui no blog foi O tempo em The Friends of Ringo Ishikawa. Contudo esse não é exatamente o primeiro que eu escrevo. A série começou bem antes, no meu antigo perfil do Medium, porém até hoje não migrei todos os textos para cá. Por enquanto, fora o do Ringo, só trouxe A desconfortante estação de metrô em Silent Hill 3 e Dragões, beat’em ups e a curva de aprendizagem. Pois bem, por conta de um outro Game Cuts que eu estou planejando, surgiu outra oportunidade para trazer um texto antigo de volta. Fiz alguns retoques, mas mantive a estrutura geral dele e espero que gostem


Anos atrás eu me deparei com um texto pela internet que falava sobre as artes das caixas dos cartuchos antigos da época do Atari, NES e Master System. Um trecho dele que me marcou foi quando o autor falou sobre como essas as artes destoavam muito da verdadeira gameplay dos jogos. Se eu não estiver me lembrando errado, um dos exemplos que ele utilizou foi Enduro.

Capa de Enduro e sua gameplay

Na visão dele, isso era uma forma que as empresas encontravam para atiçar a imaginação de nós, os jogadores, antes mesmo de comprar esses jogos. Esse comentário está na minha cabeça desde então e é uma pena que eu não lembre mais do título porque queria dar os devidos créditos. Mas tudo bem porque o texto de hoje não é sobre artes de caixas de cartuchos antigos e sim sobre imaginação. E por causa disso temos que falar de Megamente antes!

Na época do seu lançamento Megamente não recebeu tanta atenção assim, mas nos últimos anos eu tive a impressão que a animação caiu nas graças da internet. Ou vai ver eu subestimei a popularidade do filme, ou então foi só a impressão que tive dentro da minha bolha ou então…. Enfim, hoje o filme tem um pouco mais de popularidade, gerou diversos memes e falas que são citadas sempre que possível. Uma delas foi o principal motivador para esse texto.

Falo da cena em que o Megamente surge para enfrentar o Titã dizendo que ele até pode ser um vilão, porém não é um SUPERvilão. Quando o Titã pergunta qual é a diferença, Megamente response usando o termo porém “entrada triunfal”. Acho que é uma boa escolha de palavras, porque ela se alinha com a personalidade do protagonista que é muito inclinado ao espetáculo. Entretanto, caso você assistiu com a dublagem original, sabe que o termo que ele usa na verdade é:

Numa tradução mais literal a palavra significa simplesmente “apresentação” e dado o contexto realmente a adaptação para “entrada triunfal” que fizeram fica bem mais adequada a cena. Porém eu queria focar nesse conceito de presentation. Olhando o verbete no dicionário de Cambridge, especificamente na seção do dicionário americano, eu acho essa definição perfeita para ideia que eu tive para o texto.

O ato de dar ou mostrar algo, ou a maneira como algo é dado ou mostrado.

Fiz questão de enfatizar a segunda parte porque é ali que está a essência do que eu vejo para o conceito de “presentation”. O importante não é o que ou quem você apresenta, mas sim todo o processo feito para introduzir determinado um tópico, um tema, uma mensagem, etc. A entrada triunfal seria algo relativo as primeiras impressões nesse caso.

E por que eu estou falando tudo isso? Simples: Castlevania!

Ok, vou explicar melhor.

Na minha conta antiga do Twitter, anterior a época que comecei a escrever textos na internet, eu mencionei algumas vezes existe um frame em particular que eu considerava meu favorito. Foi verdade naqueles tempos e continua sendo verdade ainda hoje. Ele pertence a curta sequência de introdução do primeiro Castlevania lá de 1986. Eu adoro tanto esse frame que, como já devem ter notado, é o que eu uso no meu avatar aqui do site e também está presente na página de Sobre o Autor do blog.

Um frame de Castlevania que eu considero até hoje a melhor "entrada triunfal" dos jogos
Ô coisinha mais bonitinha do pai!

Como dito, é uma cena curta que não deve durar mais do que 5 segundos antes de iniciarmos a primeira fase. Nela Simon Belmont aparece chegando ao castelo do Drácula e observando a construção de longe antes de passar pelo portão. É uma cena icônica, uma verdadeira entrada triunfal, que já foi reproduzida em diversos outros jogos da série como Super Castlevania IV e Bloodlines.

Acredito que a primeira reação quando eu digo que esse é o meu frame favorito é pensar que é por questões de nostalgia. Contudo isso não se aplica ao caso desse Castlevania porque eu fui jogá-lo apenas alguns anos atrás. Apesar de eu gostar bastante da franquia, eu me conecto mais com a fase metroidvania dela a partir do Symphony of the Night. Já o período de “classicvania” eu só passei a gostar de uns tempos pra cá depois que joguei quase que a franquia inteira.

Por que, então? Bom, hoje penso que é tudo uma questão de imaginação!

Sabe o texto que eu mencionei lá em cima sobre as artes das caixas? Essa cena de Castlevania, para mim, serve ao mesmo princípio de estimular a imaginação dos jogadores para aventura que eles estão prestes a embarcar. Ao mesmo tempo ela também serve para estabelecer o tom do jogo que também vai mexer com a sua imaginação em algum nível.

Isso também vai de encontro com um tópico que eu me pego pensando constantemente quando o assunto é o processo criativo por trás dos jogos: a forma como os game designers nos introduzem ao seus universos. Portanto, vejo no frame de Castlevania um exemplo simples e elegante para representar essa ideia da entrada triunfal.

Nesses poucos segundos que vemos o Simon encarando o castelo do Drácula, o avatar dele desempenha uma função maior do que apenas dar um rosto e um corpo ao personagem que iremos controlar. Naquele momento o avatar também somos nós, os jogadores, que estamos prestes a sair da nossa realidade e ir para na realidade do jogo. Essa pequena transição da tela título para a primeira fase é também a nossa transição do nosso mundo para o de Castlevania, é a forma que o jogo te “puxa” para dentro dele.

Além disso, essa cena nos entrega outra coisa que é muito importante que é a ambientação e atmosfera. As sombras do castelo projetados pelo luar, os morcegos voando, os muros já desgastados, todos esses detalhes nos mostram que estamos prestes a adentrar um lugar sombrio, repleto de perigos desconhecidos e pesadelos de tempos passados. Tudo isso, reforço mais uma vez, numa cena que não dura nem 5 segundos!

Eu posso estar exagerando na anatomia de um único frame? Talvez. Mas estou sendo sincero quando digo que esse o exato sentimento que os segundos iniciais de Castlevania me passaram na primeira vez que eu o joguei. Não consigo deixar de desver isso como uma entrada triunfal. Mas esse não é o único exemplo que eu tenho para ilustrar meu ponto.

Há bastante tempo, num período que eu estava me aventurando pelas série de jogos Mana, um amigo me enviou uma entrevista sobre o segundo jogo da franquia que é o Secret of Mana. Felizmente nesse caso eu ainda tenho o link. Essa é uma antiga entrevista de dois compositores, Hiroki Kikuta e Yoko Shimomura, que trabalharam na série. Num determinado momento, os dois conversam sobre a cena de abertura de Secret of Mana onde Hiroki comenta sobre como ele fez questão que o primeiro som que o jogador ouvisse seria o canto de uma baleia. Isso acontecia bem no momento em que surge a logo da Square, SquareSoft na época. Isso causou confusão na equipe porque ninguém entendia o motivo do Hiroki querer tanto aquilo.

A razão desse estranhamento inicial, como a Yoko comenta, se devia ao fato que na época o que se esperava durante essas telas de abertura era um daqueles “pings” eletrônicos. Então o Hiroki adiciona:

Não era o som eletrônico ao qual você foi condicionado a esperar, mas eu acho que isso começa o jogo com uma nota mais evocativa. Para colocar de forma mais concreta, a série Mana não é toda sobre essas criaturas mágicas, essas bestas divinas? Pareceu mais significativo colocar um som ali que estivesse mais profundamente conectado ao espírito do jogo. Talvez a maioria das pessoas que o ouça não possa dizer com certeza o que isso significa, mas eu senti que o conceito foi transmitido mesmo assim e era difícil de esquecer

Qualquer erro na tradução eu culpo inteiramente o Google Translate. Prosseguindo!

Tanto o Hiroki quanto a Yoko entendem como se pode passar uma mensagem ao jogador de maneira sutil com a música. Isso já desperta um sentimento nele e ajuda a criar uma conexão praticamente instantânea com a obra. Até mesmo no caso do jogador não ter compreendido completamente essa mensagem.

E quer quer outro exemplo usando música? Beleza, essa será uma entrada triunfal um pouco mais complexa porque mistura várias camadas: Streets of Rage. Vou pedir a vocês que deem play no vídeo e fechem os olhos enquanto ele toca. Esqueçam tudo que sabem sobre o jogo e foquem apenas em tentar tirar algum sentimento da música de abertura.

Não dá pra generalizar para todos os casos, mas tenho certeza que em muitos de vocês a música despertou um certo um sentimento de desolação nos seus primeiros segundos. Agora se você voltar no vídeo e combinar a essa parte com a visão panorâmica da cidade, ignorando o texto que passa na sua frente, você talvez note uma certa melancolia quase como se a cidade estivesse se lamentando em toda essa cena.

Posso afirmar que no meu caso a abertura de Streets of Rage puxa imediatamente da minha cabeça a memória de vários filmes policiais dos anos 80 e 90 onde a história se passa numa cidade ou bairro que está sendo dominado pelo crime. Que, vejam só, é exatamente o contexto do jogo.

Só que no caso de Streets of Rage a melodia melancólica não se perpetua por toda a abertura. Na verdade ela não dura mais que 20 segundos e logo depois uma nova camada é acrescentada. A batida eletrônica que sobrepõe o tal “lamento da cidade” a que me referi nos traz um novo sentimento, algo mais instigante. Essa batida é quase como um chamado a ação que, ao mesmo tempo que demonstra a determinação dos personagens da trama em enfrentar a organização criminosa, também convida o jogador a se juntar nessa luta também.

Agora se você voltar na abertura e reparar também no texto verá que segundos depois da batida eletrônica começar os protagonistas do jogo são citados. E só pra citar mais um exemplo musical, vamos ao menu inicial de Kingdom Hearts 2:

A primeira reação é sempre dizer como essa música é relaxante, mas vamos ir um pouco mais fundo.

De fato é uma melodia bem tranquila e pra alguns ela chega até ser melancólica. O olhar contemplativo no horizonte do Sora ajuda nisso. E a forma como ele segura o picolé com a boca e os tons mais sublimes da arte dão uma certa inocência a ele, não é? Como uma criança perdida a espera de algo ou alguém. Com a música entrando bem devagar na sua cabeça, logo você se sente sendo transportado por uma época bem mais simples da vida. Talvez uma época em que você teve o primeiro contato com os vários personagens de diferentes histórias que você encontrará no jogo. E logo você é a mesma criança ali parada na praia com os pés no mar e perdida com os seus pensamentos, inseguranças e desejos.

Eu escolhi esses quatro exemplos a dedo porque cada um usa abordagens diferentes. Em Castlevania é dada uma ênfase no aspecto visual. Secret of Mana é através dos sons. Kingdom Hearts tem a soma desses dois aspectos. E Street of Rages usa tanto visuais, música e texto. Mas todos eles servem ao mesmo princípio explorar a imaginação do jogador.

Antes mesmo de você ter o controle dos personagens esses jogos, de alguma forma, já conseguiram te fazer sentir como vai ser a experiência. Você ainda não interagiu com nada, porém já está imerso no universo daquele jogo. A conexão foi tão instantânea, que é capaz que você nem tenha percebido ou conseguido defini-la. Mas, como o Hiroki disse, a coisa já está ali na sua cabeça.

Portanto o Megamente estava certo. A “entrada triunfal” faz uma enorme diferença!

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *