Em Memória à Satoshi Kon é uma minissérie de cinco textos sobre a obra de um dos grandes diretores de animação que já existiu. Satoshi Kon iniciou sua carreira em 1984 e esteve em atividade até sua morte em 2010 por conta de um câncer pancreático. Durante esse período ele foi responsável por algumas das melhores animações japonesas. Aqui já falei de Paranoia Agent, Perfect Blue, Millennium Actress e Tokyo Godfathers. Hoje encerro a minissérie com o seu último filme: Paprika.

Satoshi Kon, um dos grandes diretores da história da animação, falecido em 2010

Paprika, último filme lançado por Satoshi Kon antes da sua morte, aborda a nossa relação com sonhos e nosso subconsciente
Hoje é dia de pedir desculpas

Quando pensei em fazer essa minissérie eu tinha uma pequena preocupação. Eu sabia que gostava de Perfect Blue, Millennium Actress e Tokyo Godfather. O último sobretudo já que ele é meu filme natalino favorito. Porém com Paprika a coisa era diferente. Esse foi o único filme do Satoshi Kon que eu não revi durante esses anos. Assisti já deve ter mais de uma década e minha memória era que eu não gostei muito dele depois daquela primeira (e única) vez. Então deixei ele para o final da fila para me dedicar aos que tinha certeza de curtir.

Ao mesmo tempo eu carregava uma esperança. E tal esperança residia no fato de eu também saber que quando eu era mais jovem eu era uma completo idiota. No meio nerd existe aquela ideia besta da regra dos 15 anos que desestimula as pessoas a revisitar as obras da sua infância para não se decepcionar. Eu acho uma bobeira, coisa de adulto que tem medo de reavaliar suas próprias opiniões. Por isso eu busco ativamente procurar alguns dos filmes e séries que vi há muito tempo e fazer novas leituras. Com isso eu passei a notar alguns desses títulos que eu detestei vinham de um lugar de ignorância. O maior exemplo é Contos do Dia das Bruxas. Eu não curti quando assisti ali pelos meus quinze anos e hoje ele é meu filme de Halloween favorito.

Portanto havia essa possibilidade do mesmo ter acontecido com Paprika. Pois bem… é, realmente eu era um completo idiota!

Paprika voando sobre a cidade no mundo dos sonhos
UM COMPLETO IDIOTA!!!

Mesmo que ainda seja minha animação menos favorita do Satoshi Kon, agora eu sou mais capaz de ver como Paprika não só é um bom filme como também tem é muito simbólico na filmografia do diretor. Porque quando ele começou a dirigir longas-metragens, o seu primeiro foi uma adaptação de um livro e o que acabou sendo o seu último também foi adaptado de um. Além disso, se fizermos uma linha do tempo desses filmes, a gente vê como em Perfect Blue o Satoshi Kon inicia a sua temática sobre a relação da realidade e ficção e em Paprika ele chega ao ápice. Mas estou me adiantando, vamos voltar um pouco.

Paprika é uma adaptação do livro homônimo de Yasutaka Tsutsui, autor de A Garota que Conquistou o Tempo que também recebeu uma animação dirigida por Mamoru Hosoda. A história se passa no futuro onde um instituto de pesquisas psiquiátricas desenvolve uma tecnologia que permite as pessoas acessarem os sonhos umas das outras. Kōsaku Tokita, um dos cientistas mais talentosos do instituto, é a mente por trás do DC Mini, uma versão portátil dessa tecnologia que está em desenvolvimento. Junto dele temos outros dois personagens importantes: Toratarō Shima, o chefe da equipe do instituto, e Atsuko Chiba.

Chiba é uma brilhante psiquiatra que vem realizando um experimento paralelo com o DC Mini. Sem o conhecimento do instituto, a não ser dos seus colegas Tokita e Chiba, ela usa o dispositivo para tratar de alguns pacientes fora do seu ambiente de trabalho. Para isso ela assume um alter-ego, Paprika. Para não causar confusões, quando o nome estiver em itálico eu estou me referindo a personagem e não ao filme.

Personagens principais de Paprika reunidos em cena
Minutos antes da merda acontecer

O mais recente paciente de Chiba é o detetive Toshimi Konakawa que vem sendo atormentado por um pesadelo recorrente. Durante o tratamento, alguns dos protótipos do DC Mini são roubados. Como esses dispositivos não possuem restrições, o ladrão é capaz de invadir a cabeça das pessoas e implantar sonhos. Uma das suas vítimas é o próprio doutor Shima que quase morre ao saltar de uma janela ao pensar que estava dentro de um sonho. Tokita e Chiba tentam então rastrear esse ladrão que põe em risco não apenas o projeto, mas a segurança de todas as pessoas ao seu redor.

Hoje quando eu olho para a trama de Paprika eu vejo que é algo 100% ao meu estilo. Não curto ficção científica, porém como tem uma qualidade mais fantástica por conta dos temas de sonhos o filme fica muito mais alinhado aos meus interesse. Contudo, ênfase na palavra “hoje”. Isso porque eu tinha um problema na minha juventude que era de achar que a ficção precisava “fazer sentido”. Mas não dentro da lógica do seu universo e sim naquilo que eu tomava como correto. No fim, era só eu tentando arrogantemente ser mais esperto que a mídia, o que apenas revelava a minha ignorância.

*cof* *cof* CinemaSins *cof* *cof*

Por causa dessa minha falha na forma de interagir com obras, exigindo que eles seguissem uma linha lógica que eu, e somente eu, defini como a correta, isso me deixou numa posição em que eu não percebia a qualidade mais fundamental em Paprika: o filme é um sonho.

Ok, calma aí! Deixa eu me expressar direito. Não é que os eventos de Paprika se passam todos no sonho, existe uma separação clara desde o início. Contudo a gente tem que interpretar a cinematografia do filme como similar a um sonho. A melhor forma é através das transições de cena e como muitos momentos parecem iniciar já no meio de uma ação. Elipses são muito comuns na narrativa de um filme para eliminar ações desnecessárias, mas a forma que o Satoshi usa isso em Paprika é para esconder os limites entre a realidade e os sonhos. Nós nunca vemos uma transição entre esses dois planos, num momento os personagens estão no mundo real, de repente estão em meio a um sonho e logo em seguida estão de volta a realidade.

Esse elemento evoca a forma como os sonhos costumam funcionar, onde todo o cenário ao seu redor muda completamente só de você passar por uma porta. Inclusive o próprio filme representa isso logo no início quando Paprika está ajudando o detetive Konakawa, acompanhando seu pesadelo recorrente. Nessa parte, cada ação faz os personagens “caírem” em outro lugar como uma cena de um filme do Tarzan, depois um de ação, um drama de época e então a cena de um crime que o detetive está investigando. Essa confusão entre as transições de um sonho para o outro passa a se repetir nas sequências seguintes.

Sequência em que os personagens transitam para diferentes sonhos em segundos, algo que se replica na própria cinematografia do filme
Satoshi Kon manja demais!

Exatamente por isso que eu não consigo imaginar outro diretor fazendo uma adaptação do livro. Tornar os limites entre ficção e realidade mais indefinidos é um tema muito marcante das principais obras do Satoshi Kon, logo ele era o “casamento” para uma história que vai romper essas barreiras por completo. Melhor ainda quando olhamos esse aspecto dentro da filmografia do diretor. Em Perfect Blue a ficção se manifestando no mundo real é um reflexo do estado psicológico da protagonista. De forma similar, em Millennium Actress esses limites desaparecem apenas narrativamente, eles não fazem parte de fato da lógica daquele universo. É em Paranoia Agent onde começamos a ficção invadir a realidade de verdade e Paprika é uma extensão desse processo.

Eu vejo nessa mudança o Satoshi mostrando cada vez mais como muita da nossa vida é influenciada pela arte, pelo entretenimento, pelas histórias que ouvimos, etc. Ainda que elas existam num universo imaginário, nós somos capazes de sentir seus efeitos no nosso dia-a-dia. Os sonhos operam da mesma forma, afinal frequentemente eles são vistos como uma manifestação de coisas que se encontram no nosso subconsciente. Eles ilustram nossos conflitos internos, nossos anseios, medos, preocupações, vontades e sentimentos que ainda não conseguimos compreender direito ou tentamos esconder. Chiba e o Tokita são ótimos exemplos dessas ideias.

Tokita é descrito como um cientista brilhante cujo comportamento é quase como o de uma criança. Quando ele fala da sua criação, o DC Mini, você nota um deslumbramento no olhar dele como se fosse um garotinho com seu brinquedinho favorito. E quando vemos o personagem nos sonhos, ele escolhe usar avatar de um robô. Mas não um robô qualquer, aqueles robôs de brinquedo com formas quadradas. Pelo monitor vemos o rosto real do Tokita e dá para interpretar como o filme dizendo que apesar dele ser visto como uma criança, ali dentro existe um talentoso engenheiro.

Kōsaku Tokita, cientista brilhante que criou o DC Mini porém tem um comportamento quase que infantil
Os designs desse filme são fenomenais

Além disso, dá para incluir uma segunda camada quando a gente pensa na aparência do personagem. Tokita é construído como uma pessoa muita obesa e quando o conhecemos ele acabou entalando na porta do elevador enquanto procurava por Chiba. Dá para inferir que o seu avatar é também como ele acaba se vendo no dia-a-dia, tendo que se “encaixar” tanto figurativa quanto literalmente em todo dos ambientes que ele se encontra.

Do lado de Chiba, no mundo real nós vemos que ela é uma mulher muito séria e por vezes fria. Seus olhos estão quase sempre estreitos, dando-lhe um ar muito intimidador. É perceptível que ela tem um distanciamento com as outras pessoas. Comparando isso com seu avatar é quase como ir da água para o vinho. Paprika usa roupas mais descoladas, tem cores vibrantes, seus olhos são mais arredondados e a sua própria forma de falar é num tom muito mais amigável e descontraído.

Através de Paprika, a Chiba tem uma capacidade muito maior de se conectar às pessoas, como vemos quando ela está tratando o detetive Konakawa. E nesse caso Paprika não é nem a versão que Chiba almeja ser e sim alguém que tem medo de se tornar, seja temendo como seria tratada no seu ambiente de trabalho seja por uma dificuldade de ser sincera com seus próprios sentimentos.

Doutora Atsuko Chiba junto com sua alter ego, Paprika, quando os sonhos invadem o mundo real
Sem tempo para perguntas. Isso é literalmente o diálogo do filme!

Quando temos os sonhos finalmente invadindo o mundo real, o que faz com que Paprika se manifeste também, o conflito só é resolvido quando ela e Chiba se fundem. A personagem literalmente renasce diante dos nossos olhos e talvez esse seja um dos detalhes mais importantes que eu não consegui entender na primeira vez. Porque eu via isso apenas como uma resolução aleatória para o conflito maior da trama, alheio que aquilo servia mais como uma resolução para a própria personagem.

O meu retorno a Paprika deixou claro que os problemas que eu tinha com animação não vinham do filme. Era eu e minha limitação com mídias, querendo obrigá-las a funcionar com FATOS & LÓGICA™️ para que eu não tivesse dificuldade de compreender. Satoshi, não entendi! É o tipo de coisa que somente o amadurecimento natural da vida resolve. Por isso, a motivação real desse texto acaba não sendo falar de Paprika e sim mostrar como é importante não termos medo de confrontar nossas antigas opiniões, independente se eram positivas ou negativas.


Esse era para ser o último capítulo na minha jornada pela filmografia do Satoshi Kon. Contudo, nesse período entre a redação do texto até sua publicação, eu acabei vendo mais alguns coisas que ele se envolveu. Então resolvi reunir mais três obras que tiveram algum dedinho do Kon no seu desenvolvimento e farei um novo artigo para fechar a série de vez. Provavelmente ficará pronto só na segunda metade do próximo mês, então nos vemos lá!


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