ANTES DE COMEÇAR
Há alguns meses eu “encerrei” a minha minissérie de textos sobre Gundam e fiquei pensando se deveria fazer uma segunda. Poucas semanas atrás eu decidi ver a série animada, Paranoia Agent, criação de ninguém menos que Satoshi Kon. Eu já estava há um tempo refletindo nas obras dele e planejei rever Millenium Actress. Ao mesmo tempo, já que estamos nos aproximando de dezembro, também deu uma vontade de assistir Tokyo Godfathers que é meu filme natalino favorito. Portanto vi que existia uma ótima oportunidade aqui para fazer uma série de textos com base nos seus principais trabalhos. E assim nasceu: Em Memória à Satoshi Kon
Satoshi Kon foi um dos grandes nomes – e uma triste perda também – da animação japonesa moderna. No seu tempo em atividade ele dirigiu quatro excelentes longas-metragens, Perfect Blue (1997), Millenium Actress (2001), Tokyo Godfathers (2003) e Paprika (2006), além da série Paranoia Agent (2004). O trabalho do Satoshi causou um profundo impacto em mim e foi um dos responsáveis por me tirar do eixo mainstream de battle shonens que eu me encontrava na época. Porém quando eu vim a conhecer os filmes do Satoshi ele infelizmente já tinha falecido, vítima de um câncer pancreático em 2010. Ele faz uma tremenda falta pro atual cenário da animação japonesa e por isso uma obrigação de falar sobre as fantásticas obras que o Satoshi nos deixou.
Dos seus quatro filmes aquele que eu mais gosto, e com grande vantagem, é Tokyo Godfathers. Não é somente uma das minhas animações favoritas como também o meu filme de Natal favorito. Então geralmente nesse período de dezembro eu decido revê-lo e esse ano eu tive mais incentivos para tal já que há um tempo eu pensava em falar sobre ele por aqui.
Esse é filme que passei a achar cada vez mais curioso depois de conhecer todos os trabalhos do Satoshi Kon. Isso porque quando comparamos com seus três outros filmes e a série fica evidente que Tokyo Godfathers é um ponto fora da curva. Não em questão de qualidade, isso é uma constante em tudo que o Satoshi tocou. Eu me refiro aos temas do filme que divergem bastante daqueles que o diretor costumava abordar nos seus projetos.
MUITOS SPOILERS DE TOKYO GODFATHERS
DAQUI PARA FRENTE
Acredito que seja um consenso que a principal “marca registrada” são suas histórias que lidam com os limites entre a realidade e a ficção. Em Perfect Blue seguimos uma ex-idol de J-pop que vai perdendo o contato com o mundo real devido aos estresses gerados pela sua nova carreira e um stalker que atormenta sua vida. No seu segundo filme, Millenium Actress, o Satoshi usa a relação entre o cinema e os eventos da vida de uma atriz aposentada para contar a sua história. E em Paprika temos literalmente o mundo dos sonhos se fundindo com o mundo real. Por sua vez, em Tokyo Godfathers ele se afasta dessa temática, sem perder a qualidade ao mesmo tempo fantástica, e sobretudo humana, dos seus filmes anteriores.
Em Tokyo Godfathers nós acompanhamos três moradores de rua: um homem de meia-idade chamado Gin, uma mulher trans que se chama Hana, e a adolescente Miyuki. Durante a véspera de Natal, enquanto vasculhavam o lixo em busca de alguns livros pra Miyuki, eles acabam encontrando uma bebê recém-nascida. A princípio Hana, que sempre quis ser mãe, decide ficar com a criança dando-lhe o nome de Kiyoko. Porém o bom-senso fala mais alto e tanto ela quanto Gin e Miyuki concordam que as ruas não são um lugar para se criar uma recém-nascida. Assim os três partem em busca dos pais de Kiyoki para entender porque eles a abandonaram e, caso não a aceitem de volta, entregá-la as autoridades competentes.
Por conta de ser uma história que se desenrola no Natal, é impossível não associar os protagonistas às figuras bíblicas dos três Reis Magos. Ainda mais quando na primeira cena temos a Hana e o Gin assistindo uma peça infantil retratando o nascimento de Jesus Cristo. Indo um pouco além, uma das inspirações do Satoshi foi o filme O Céu Mandou Alguém (3 Godfathers, 1948) que, adivinhem só, é uma releitura americana dos Reis Magos no Velho Oeste.
Apesar desse contexto eu não chegaria ao ponto de dizer que Tokyo Godfathers é um filme religioso. Claro que religião tangencia o filme, afinal dá para destacar temas sobre fé e milagres no roteiro, só não acho que é um recorte especificamente cristão porque perderia a qualidade universal da sua mensagem central. Para mim, nesse caso a imagética natalina é usada como uma ferramenta para fortalecer o tema fundamental de Tokyo Godfathers que é família. Não apenas a família tradicional cristã e im o próprio conceito de família cujos laços vão além de consanguinidade.
Todos os personagens dividem uma mesma característica, inclusive com Kiyoko, pois tiveram suas relações familiares desfeitas. A diferença é que no caso dos protagonistas foram as suas ações que os levaram a se afastar da família e ir viver nas ruas. Com isso o Satoshi busca humanizar figuras que geralmente ficam à margem das histórias, ao pô-las sob o holofote da narrativa e ir a fundo nas razões que as levaram até esse ponto na vida.
Gin – que por um tempo escondia os reais motivos que o fizeram perder sua família – tinha um grave problema com apostas. Isso o levou a se afundar em dívidas e a abandonar a esposa e a filha para fugir dos seus credores. Hana nunca chegou a conhecer sua mãe biológica, porém teve uma vida feliz com sua mãe adotiva. Porém após perder seu parceiro num acidente doméstico e agredir um cliente no bar que trabalhava, o luto e a vergonha fizeram com que ela se afastasse da mãe e dos amigos. Miyuki se sentia negligenciada pelos pais e fugiu de casa após uma briga quando sua gatinha que tanto amava sumiu. O surto de raiva da jovem foi tamanho que ela acaba esfaqueando o próprio pai e foge desesperada de casa.
De tal forma, os protagonistas procuram um nos outros aquilo que eles perderam. Nunca fica claro se Hana tem um amor fraternal ou romântico por Gin, porém é evidente que sente uma afeição pelo homem. Já ele tenta ser uma figura paterna para Miyuki numa forma de se perdoar por ter abandonado a própria filha. E no caso da jovem, ela desenvolve um vínculo afetivo de mãe e filha com Hana para compensar pela relação conturbada que tem com sua mãe. É uma família desajustada, porém real. Eles tem suas brigas, seus impasses, mas permanecem juntos e se esforçam para manter essa unidade existente.
Apesar disso você vê que ainda existe esse vazio em cada um dos três, pela falta que suas famílias primárias fazem em suas vidas. É por entenderem a importância desse pilar familiar que eles tentam garantir que Kiyoko o tenha. A caridade que eles fazem para com a menina é o que os coloca num caminho em que eles também possam recuperar aquilo que perderam. Assim entra o segundo tema fundamental de Tokyo Godfathers que compõe o lado mais fantástico dessa obra. A jornada desses três Reis Magos modernos é marcada por uma série de coincidências que fazem os personagens terem o sucesso na busca pelos pais de Kiyoko.
Quando falamos de coincidências/conveniências em uma determinada história, isso nem sempre chega a ser bem visto pelo público. Cada caso é um caso, mas existe a tendência de interpretar essas ocorrências como um sintoma de roteiro mal escrito. Porém isso acontece, geralmente, quando as coincidências são utilizadas como uma resolução e não um catalisador para conflitos. Por exemplo, é uma série de coincidências que levam a família de Kevin a esquecê-lo em casa no filme Esqueceram de Mim (Home Alone, 1990). Ninguém – em sã consciência – tem um problema com isso, pois é graças a esses eventos ocorrerem que a história do filme nasce. Por outro lado, ninguém tem essa mesma boa vontade com o fato do Kirk fortuitamente caindo perto da caverna onde o Spock está quando ele é exilado no planeta de Delta Velga em Star Trek (2009).
O caso de Tokyo Godfathers tem um pouco de Esqueceram de Mim já que os personagens terem encontrado Kiyoko pode ser visto como uma obra do acaso. Mas ao longo do filme, o que mais vemos são ocorrências ao estilo de Star Trek. Não tem um evento após o primeiro ato que não parta ou então um conflito que não seja resolvido por uma dessas coincidências. Contudo como elas acontecem tantas e tantas vezes acabam se transformando numa importante ferramenta narrativa. Não há espaço para interpretá-las como um sinal de roteiro mal escrito pelo Satoshi e sua co-roteirista Keiko Nobumoto. Pelo contrário! Eles transformam as coincidências numa parte integral da história.
Mais uma vez a ambientação vem em benefício do tema. As conveniências do roteiro compõe uma espécie de “milagre de Natal” que traz a qualidade fantástica para dentro desse universo. Podemos notar isso pela pela forma como o filme constrói a Kiyoko como um de anjo da guarda para o grupo. É a partir da presença dela que os protagonistas são agraciados com uma sorte que os guia e protege de todos os obstáculos nessa jornada.
Essas primeiras coincidências surgem na história, a princípio, de dois modos. Primeiro com um teor mais cômico. Por exemplo, quando Hana e Gin estão no evento da igreja que está distribuindo sopa aos moradores de rua, ela brinca com uma das voluntários que estaria “comendo por dois”. Mais tarde, quando o trio está numa estação de metrô procurando um armário cuja a chave foi deixada junto de Kiyoko, a senhora aparece numa escada rolante e vê Hana com a bebê e acha que ela milagrosamente teve uma filha mesmo.
Já no segundo modo, elas ocorrem de forma imperceptível. Somente com acesso a informações que surgem lá na frente que podemos notar que o roteiro já estava indicando isso desde as primeiras cenas.
A partir dos 20 minutos de filme o cenário muda pois as coincidências passam a ser muita mais escrachadas. O ponto de virada é quando Gin, Hana e Miyuki estão tentando chegar a um salão de eventos do outro lado da cidade e passam por um cemitério. No armário do metrô eles encontram uma bolsa com várias fotos dos supostos pais de Kiyoko e uma série de cartões de visita de uma boate. Ao sair do cemitério, eles esbarram com um chefão da Yakuza sendo esmagado pelo seu carro. Gin e Hana salvam o senhor que em agradecimento oferece qualquer ajuda a eles. Hana então pergunta se o mafioso conhece aquela boate e, coincidentemente, a filha dele está se casando com o dono naquele exato dia.
O grupo vai até o o salão em que ocorre a festa de casamento e o noivo reconhece a mulher da foto e lhes dá seu nome e endereço. Nessa hora Gin passa a demonstrar muita raiva. Quando Hana o questiona, ele revela que o noivo, coincidentemente, foi quem o fez perder muito dinheiro que o levou a abandonar sua esposa e filha. Gin pega uma garrafa para agredi-lo, algo que provavelmente faria com eles fossem mortos pelos outros mafiosos. Porém, coincidentemente, um membro de outra facção se infiltra na festa e tenta assassinar o chefão. Estoura uma confusão no salão e o atirador escapa fazendo de Miyuki de refém.
Logo depois Gin, que está bêbado, e Hana tem um desentendimento e ela vai procurar por Miyuki sozinha. Gin então perambula arrependido pelas ruas até encontrar um morador de rua moribundo. Ele leva o senhor de volta ao seu barracão, acompanhando-o nos seus últimos minutos na Terra. Após o velho morrer, Gin vê uma foto na parede que, coincidentemente, mostra os prédios da foto dos pais de Kiyoko. Ele resolve ir atrás de Hana e Miyuki, porém é atacado por um bando de adolescentes que o deixa gravemente ferido. Gin é salvo por uma das funcionárias de um clube noturno. Já podem adivinhar o que eu vou falar a seguir, né? Sim, coincidentemente, esse é o mesmo bar que Hana trabalhava e, coincidentemente, ela decide aparecer por lá com Miyuki em busca de abrigo. Assim o grupo se reúne de novo e dão continuidade na busca pelos pais da menina.
Poderia fazer uma lista toda citando todas as dezenas, dezenas de coincidências que marcam o roteiro de Satoshi Kon. É assim que Satoshi Kon transforma uma crônica urbana num cativante conto de Natal sobre união, esperança e família. Novamente, a família aqui não precisa ser de pessoas que dividem algum grau de parentesco. As coincidências refletem essa aura “mágica” dessa época em que nos permitimos ser um pouco mais esperançosos com a vida. Laços podem ser reatados, o perdão, vindo dos outros e de si mesmo, é possível existir, pessoas “quebradas” podem se ajudar mutualmente. De certa forma, Tokyo Godfathers é um filme bem idealista e tradicional, no sentido que busca resgatar essa intimidade familiar mais pura do feriado que hoje virou um shopping center da sociedade hiperconsumista moderna.
Tokyo Godfathers, como falei diversas vezes, tem um roteiro fantástico. Não me refiro apenas no sentido de extraordinário, também uso a noção de fantasia nessa afirmação. O filme nos mostra mais uma vez imensa habilidade de Satoshi Kon contar uma história de maneira criativa e intrigante, além de toda sua capacidade em representar as emoções, aflições e os conflitos humanos de uma forma tão cuidadosa e cativante.
Tal como a sua própria história, Tokyo Godfathers é um milagre de Natal da animação. Se há uma lista por aí dos melhores filmes para se assistir nessa época, seria um crime não incluí-lo!
Um Feliz Natal a todos!
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