Em Memória à Satoshi Kon é uma minissérie de cinco textos que pretendo fazer sobre a obra de um dos grandes diretores de animação que já existiu. Satoshi Kon iniciou sua carreira em 1984 e esteve em atividade até sua morte em 2010 por conta de um câncer pancreático. Durante esse período ele foi responsável por uma série animada, Paranoia Agent, e outros grandes longas-metragens da animação japonesa como Millennium Actress e Tokyo Godfathers. No texto de hoje falarei sobre seu primeiro filme: Perfect Blue.

Satoshi Kon, um dos grandes diretores da história da animação, falecido em 2010

Perfect Blue foi o primeiro filme dirigido pelo Satoshi Kon e pra mim serve como uma curiosa obra para se tentar entender a mente desse artista
O primeiro contato a gente nunca esquece

“Precisamos separar o artista da obra” é uma frase muito repetida na internet e que eu não sou muito fã. Não só pela sua ideia central, isso eu acho perfeitamente discutível, meu problema é o contexto no qual ela surge com frequência.

Nas redes sociais estamos constantemente testemunhando uma disputa entre pessoas querendo exaltar sua superioridade moral sobre as demais. Mas não se limita apenas ao campo dos valores, ela se estende até nas obras que tais pessoas consomem. É provável que você já se deparou com fulaninho de tal condenando quem gosta de um filme ou um livro particular porque o autor é “problemático”. A implicação é simples e tosca. Se o autor tem a falha de caráter X e você gosta de algo que ele fez, você TAMBÉM tem a falha de caráter X. Resultado: no desespero de tentar se defender de tamanha acusação abobalhada, as pessoas, sem a menor necessidade, se justificam com aquela frase que pra mim é igualmente abobalhada.

A gente não precisa ficar com medo ou vergonha de gostar de algo só porque o autor tem seus esqueletos nos armários. H. P. Lovecraft era um supremacista branco e você consegue identificar o elementos em vários dos seus textos. Contudo seu contos seguem como o alicerce que sustenta o horror cósmico. Roman Polanski não pode pisar no território norte-americano há quase 50 anos porque fugiu de uma condenação de abuso sexual de uma menor. Mesmo assim O Bebê de Rosemary continua como um dos melhores filmes de terror psicológico da história do cinema. Nobuhiro Watsuki foi preso em 2017 pela posse de pornografia infantil. Isso não remove o status de Rurouni Kenshin como um dos mangás mais influentes da década de 90.

Se a gente for parar para listar cada pessoa com um ou mais trabalhos renomados que tem uma controvérsia, ou uma ficha criminal, sobre as costas a gente não sai daqui hoje. Gente ruim é capaz de fazer arte boa e nós temos que olhar a qualidade dele independente das ações dos seus autores. Ao mesmo tempo, também não devemos tentar fingir que a essência deles, dos melhores aos piores traços, não escapa para dentro dessas obras. Eu enxergo essa ideia de separá-las do autor só uma tentativa de “purificá-las” para um consumo livre de culpa.

*sigh*

É dessa forma que eu decidi abrir meu texto sobre o Satoshi Kon…

Rumi do ponto de vista de Mima, enxergando nela o seu passado como idol que ela quer deixar para trás e seguir numa nova vida
Em minha defesa, uma introdução bizarra combina perfeitamente com o tom desse filme

Não era minha intenção partir de um ponto tão delicado e que tende a fomentar opiniões muito inflamadas, porém era necessário. Eu precisava ilustrar que essa ideia de separar o autor da obra é pura balela. A arte faz parte tanto do artista quanto o artista faz parte da arte. Isso não é um argumento em defesa da intenção do autor, vocês já sabem minha opinião nesse tópico, e sim uma proposta de entender um artista através da sua obra. Claro que toda pessoa é muito mais complexa do que um filme, um livro, um jogo ou uma série que produziu. O que eu defendo é ter uma noção da mente do artista observando os temas que ele nos traz através do seu trabalho. E foi com essa perspectiva que eu revistei Perfect Blue há alguns dias (ou semanas dependendo de quando sairá esse texto).

O primeiro filme que Satoshi Kon dirigiu foi, coincidentemente, o primeiro contato que tive com ele quando estava na faculdade. Eu frequentava um grupo otaku do Facebook – época terrível que graças a Deus eu já superei – e o nome do Satoshi pipocava de vez em quando. Se não me falha a memória, os dois filmes que mais citavam no grupo eram Perfect Blue e Paprika. Eu estava interessado em longas-metragens japoneses, já que até o momento eu só havia acompanhado as séries, e decidi ir por esses dois. Mal sabia eu que o trabalho do Satoshi Kon se tornaria um dos meus favoritos na vida.

Sempre que me perguntam em que ordem ver os filmes dele (aconteceu duas vezes na vida) minha resposta padrão é que não importa. Só tenho uma única sugestão que é deixar para assistir a série animada de Paranoia Agent depois de ver seus três primeiros filmes. O Satoshi aproveitou várias ideias que surgiram a partir dessas obras na série, então acredito que fica melhor quando você já tem esse conhecimento prévio. Só que recentemente, pensando nessa noção de conhecimento prévio, eu tive uma epifania em relação a Perfect Blue. De fato ela é uma boa porta de entrada ótima para o trabalho do Satoshi Kon, porém eu gostaria de dar um passo além. Acredito que seja um dos filmes dele que você deveria rever depois de “zerar” as outras obras.

O stalker em Perfect Blue é um comentário sobre a nossa relação obsessiva seja como uma obra ou com um artista
Que pedrada da animação!

Todo diretor desenvolve a sua assinatura particular com o tempo. Por assinatura eu me refiro a um conjunto de técnicas cinematográficas, temas e referências estéticas que compõem o seu estilo de direção. Spike Lee tem seus filmes centrados em comentários sociais sobre raça. Tim Burton adora um expressionismo alemão. David Lynch usa muito os sonhos para explorar o subconsciente dos seus personagens. Martin Scorsese utiliza muitos planos-sequência, slow motion e congelamento da imagem. Hayao Miyazaki prefere visualizar a narrativa dos seus filmes através de storyboards em vez de roteiros.

O estilo desses cinco diretores, tão distintos entre si, ainda que possam dividir características e visões em comum, hoje está muitíssimo bem documentado. Se você voltar nos primeiros trabalhos deles, é seguro que encontrará muitos desses traços, ainda que não tão aparentes quanto suas obras mais recentes. Logo, podemos estender esse raciocínio a Perfect Blue que nos mostra a gênese do estilo que o Satoshi Kon empregaria nos seus outros projetos.

Algo que acho muito curioso nesse caso é que o filme não era para ser um trabalho tão autoral dele. Acredito que a maioria não deve saber, mas Perfect Blue na verdade é uma adaptação. A história foi baseada no livro de Yoshikazu Takeuchi chamado Perfect Blue: Complete Metamorphosis (1991). Inicialmente o autor tinha o plano de fazer um live-action direto para vídeo, porém pela falta de fundos suficientes ele optou por uma animação. O projeto caiu no colo da Madhouse e o estúdio sondou o mercado em busca de alguém para assumir a direção. Um dos produtores entrou em contato com o Satoshi Kon por gostar do seu trabalho numa OVA de JoJo’s Bizarre Adventure e ofereceu a oportunidade de dirigir a adaptação.

Quando o Satoshi embarcou no projeto, o roteiro já estava pronto e era bem fiel ao livro. Ele tinha algumas visões dissonantes com o original e por isso negociou para produzir um novo roteiro. O autor concordou, com tanto que alguns detalhes fossem mantidos, e assim o Satoshi Kon foi capaz de dar vazão a sua própria interpretação de Perfect Blue. E que bom que ele teve essa liberdade, pois na minha humilde opinião ele melhorou a história em muito.

Double Bind, a história-moldura que Satoshi Kon adiciona dentro do seu filme para fortalecer o tema sobre realidade x ficção
A “história dentro de uma história”, por exemplo, é um elemento novo que o Satoshi Kon trouxe para o enredo

Perfect Blue: Complete Metamorphosis é um livro que eu descrevo como esquecível. A trama, além de muito simples, carece de uma temática forte que a torne memorável. É apenas um slasher em que uma idol, Mima Kirigoe, é perseguida por um fã obcecado depois que ela muda seu visual. Não há nenhuma grande reviravolta e os personagens não vão além dos arquétipos que você esperaria desse tipo de história.

Ao conseguir o controle criativo da adaptação, o Satoshi Kon foi capaz de expandi-la inserindo temas que seriam tão recorrentes nos seus outros trabalhos. O principal é a relação entre ficção e realidade que se repetiria em praticamente todos os seus filmes, com exceção de Tokyo Godfathers. O ápice dessa temática vem em Paprika quando a barreira entre o mundo real e imaginário é de fato obliterada, enquanto em Perfect Blue ele aborda o aspecto psicológico associado a perda de contato não apenas com a realidade mas também com a sua própria identidade. E esse último elemento também se conecta a outro tema que faz sua “estreia” no primeiro filme do diretor.

No livro, a história gira em torno do mercado do J-pop, especificamente no universo das idols durante a década de 80 e indo para os anos 90. Só que o autor não tece qualquer comentário significativo sobre essa indústria. No máximo ele retrata bem por cima algumas das dificuldades de estabelecer uma carreira de sucesso como idol. A mudança de visual da protagonista é usada mais para iniciar um conflito e ilustrar bem por cima o período de transição que as idols passavam. Um personagem ou outro menciona de vez em quando como esse é um mercado inescrupuloso e novamente não vai além dos fins retratistas. Como eu disse, o livro está mais interessado em ser um suspense 101 do que criticar ou comentar sobre qualquer outra coisa.

Já o Satoshi Kon era alguém que olhava muito para sua mídia e a indústria japonesa do entretenimento como um todo de forma crítica. Ele aborda a ficção através da relação do público para com ela, bem como a estúdios e empresas moldam e exploram esse relacionamento. Nesse sentido, Paranoia Agent talvez seja o melhor exemplo do diretor. Lá o Satoshi trabalha em cima do lado sombrio do escapismo no mundo moderno e como empresas acabam fomentando esse sentimento em benefício dos seus interesses.

Já em Perfect Blue ele comenta especialmente sobre a cultura televisiva japonesa utilizando uma narrativa-moldura com a série Double Bind que se passa dentro do universo do filme. A série mimetiza muitos os eventos pelos quais a protagonista Mima passa, o que faz a personagem perder o contato com a realidade. Ao mesmo tempo, o Satoshi usa Double Bind como uma crítica aos dramas televisivos japoneses que buscavam copiar tendências americanas em vez de criar com uma característica própria.

Claro que a visão do Satoshi Kon sobre cinema e TV não é inteiramente negativa. No seu filme seguinte, Millennium Actress, por exemplo, a perspectiva dele é bem positiva, mostrando a relação íntima que uma pessoa pode ter com o cinema e como ele é um reflexo da nossa história. Não é à toa que ele abandona a ideia original da protagonista passando por uma mudança de visual e põe a Mima optando por uma mudança de carreira. De tal forma ele tira a personagem de um universo que ele não estava tão interessado, indústria da música, e a coloca num campo que ele estava mais familiarizado, a indústria televisiva e de cinema.

Mima observada do ponto de vista do seu stalker em Perfect Blue
Abolsute cinema!

Certo, agora podemos voltar a ideia de “separar o artista da obra” que eu tanto discordo. Eu já fiz meu ponto lá atrás, mas quero retomá-lo para dar uma conclusão ao artigo. Não é necessário entender um autor para se entender uma obra. O texto dentro dela é mais do que suficiente e o autor/artista não deve ser usado como autoridade sobre a leitura de ninguém. Vejam que aqui eu uso texto no sentido de conteúdo e por isso dá para aplicar a qualquer outra mídia. Mas também não dá para fingir que o autor não existe – mesmo que isso nem seja o ponto que a teoria da morte do autor defenda – e que parte dele está inserida no seu trabalho de um jeito ou de outro.

Porém, em vez de tentar interpretar uma obra pelo seu autor, o que eu acho mais interessante é tentar interpretar um autor pela sua obra. Como um exercício criativo, claro. Não é para sair assumindo qualquer coisa de uma pessoa só porque tem um elemento numa história dele que te fez levantar uma sobrancelha.

A experiência de rever Perfect Blue me fez entender que a essência dessa minissérie ‘Em Memória a Satoshi Kon’ se encontra nesse preceito. A cada título que eu revistava – com exceção de Paranoia Agent que era o único que até então eu não tinha assistido – eu me sentia um pouco mais próximo do Satoshi. Não que eu me identifique com ele, mas porque pelos seus filmes eu pude conhecer um pedacinho da sua personalidade que o Satoshi Kon comunicava através de sua arte.

Então, quando reverem Perfect Blue, e novamente eu recomendo bastante que revejam, eu espero que o filme desperte essa mesma sensação em vocês. Mas se não despertar, está tudo bem, pelo menos você terá visto um puta filmão pela segunda vez!


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