Recentemente eu joguei de novo Metro 2033, um dos meus FPS (e universos) favoritos. O motivo dessa revisita é que esse ano finalmente consegui comprar uma cópia do livro de Dmitri Glukhovski no qual o jogo se baseia. E, como tudo que eu consumo ultimamente, havia um motivo secundário que seria fazer um texto para minha série de Double Down analisando as duas versões.
Entretanto, no momento eu me encontro num tremendo bloqueio criativo com esse texto. A introdução está lá, já comecei a escrever a parte do livro, mas ando com dificuldade de organizar meus pensamentos. Então depois de bater muito a cabeça e rezar por uma ajuda, ela me veio na forma de um bate-boca no Twitter. Sendo o enxerido (e vagabundo) que sou, fiquei acompanhando a discussão por horas. Lendo alguns comentários uma nova ideia foi cozinhando na minha cabeça. Eles reviveram um sentimento que há tempos carrego em mim e tangenciava de certa forma Metro 2033.
Esse vai ser um daqueles meus textos muito longos, então preparem-se porque só a introdução vai levar tempo.
Sobre o que aconteceu: um cara que eu sigo – cuja identidade permanecerá anônima porque ele já passou raiva demais no Twitter – acabou se enfiando num eufemístico “debate de ideias” com uma das piores máfias da internet: otakus brasileiros. Tudo começou no seguinte tweet de um fã de One Piece:
Vendo essa reclamação, o rapaz que eu sigo resolveu fazer um tweet simples que tenho certeza que na hora ele não pensou que daria qualquer problema. Nas palavras dele “se faz parte da mídia anime, não é filler” e ainda acrescentou “esquece o mangá”. Óbvio que ele entrou em mais detalhes conforme a discussão foi se inflamando, mas separei essas duas frases porque, olhando em retrospecto, acho que ali foi o erro. Concordo totalmente com o ponto dele, o ponto real que ele tentou fazer e um pessoal se esforçou pra não entender. Só que a escolha de palavras acionou os piores gatilhos dos otakus.
Quando ele disse que por fazer parte do animê aquela cena não era filler, isso convidou pessoas a acharem que ele não sabia o que o termo significava. Infelizmente semântica é o primeiro sinal que um debate vai desandar. Mas esse nem foi o gatilho mais forte. O problema foi falar para esquecerem o mangá, pois fez com que os otakus brasileiros – dois quais não se pode esperar muita coisa – entrassem em modo de INsegurança. E aí a sorte já estava lançada, com vários e vários tweets batendo em pontos que ele não e mantendo a discussão num ciclo interminável sobre fillers.
Fiquei acompanhando a discussão de longe porque eu gosto de ver as pessoas brigando quando não é nada que me compete. Porém, conforme eu ia vendo alguns tweets, o calor da discussão também foi me afetando e eu me vi cada vez mais irritado com essa noção do que é o “correto” dentro do conjunto de uma obra. Irritado a ponto de desejar novamente, sem nenhuma hipérbole, a morte do cânon!
Aqui é onde eu paro com todos os meus gracejos porque pretendo falar seriamente desse tópico. Talvez esse será o mais próximo que vocês me verão de fazer um manifesto. Porém antes de prosseguirmos, vamos colocar umas definições na mesa.
CÂNON VS FILLER
Cânon (ou cânone) é um conceito que varia de acordo com o contexto da discussão.
Por exemplo, se estamos no referindo ao cânone bíblico ele define o conjunto de textos que uma comunidade religiosa, no geral do Judaísmo e do Catolicismo, designa como conformes à regra da inspiração e autoridade divina. Ou seja, os textos sagrados que organizam uma fé. Já nas artes, o cânon literário é o conjunto de obras clássicas consideradas alta cultura que se elevam como referências dessa mídia. Nessa área, o cânon passa por uma constante revisão uma vez que novos clássicos vão surgindo de com o avanço das eras.
No lado da ficção também temos uma definição diferente para cânon que acredito que é a qual a maior parte do público está familiarizada. Dentro de um universo ficcional, o cânon busca definir quais materiais devem ser considerados oficiais para manter a continuidade entre as obras de maneira mais coesa possível. Um exemplo que me vem a cabeça é o jogo Castlevania Legends que foi considerado como não-canônico dentro do universo de Castlevania para evitar conflitos com o Lamment of Innocence sobre a origem da eterna batalha do clã Belmont contra o Conde Drácula.
Na teoria, o cânon da ficção deveria estar mais ligado ao cânon literário. Sendo assim, ele apenas definiria um conjunto de obras que possam servir como referencial. Entretanto, como a cultura pop se tornou uma espécie de religião moderna, eu vejo fãs tratando o cânon na forma bíblica. Tudo aquilo que é considerado o cânon de uma franquia é defendido com um dogmatismo ardente. Não são somente as “obras oficiais”, elas são as escrituras sagradas que não devem ser retocadas e muito menos questionadas. O cânon é a verdade absoluta!
A ideia de um cânon viaja por diversas outras mídias, mas quando falamos especificamente dos animês e mangás surge um segundo termo, os episódios fillers.
Filler é largamente utilizado dentro dessas comunidades para categorizar episódios que não fazem parte do mangá. Na maior parte dos casos, fazem esses episódios com o específico objetivo de se ganhar tempo. Como muita dessas adaptações acontecem quando mangá ainda está em andamento, há grandes chances que em algum momento o animê vá alcançar original. Quando isso ocorre os estúdios se veem na necessidade de tomar uma decisão que não seja a de cancelar a série pela metade.
A primeira é seguir por um caminho próprio e que fuja completamente do original. São os casos das primeiras adaptações de Fullmetal Alchemist e Trigun que seguem com certa fidelidade a publicação do mangá nas suas épocas e depois inventam sua própria história. O outro caminho é criar vários novos episódios até mesmo arcos inteiros para dar tempo do mangá avançar. É o que aconteceu com a histórica Saga de Asgard de Cavaleiros do Zodíaco que o estúdio decidiu produzir após a conclusão da Saga das Doze Casas e antes da Saga de Poseidon.
Também temos uma terceira via por assim dizer. São os animês produzidos em temporadas, como Attack on Titan e Boku no Hero, em vez dessa linha contínua que é o que ocorre com One Piece há mais de duas décadas. Com isso não há tanta necessidade de produzir os tão temíveis fillers. Falo temíveis com um pouco de deboche porque acho um tanto ridículo a infâmia que esses episódios ganharam dentro da comunidade otaku brasileira.
Existe uma impressão generalizada que os fillers são episódios inferiores pelos simples fato de não contribuírem para a suposta “grande narrativa” da história original. De novo eu falo com uma dose de deboche porque também acho ridículo pensar que tudo numa obra necessariamente desempenha alguma função maior na história. Pelo contrário, às vezes os autores só querem criar um respiro na narrativa, testar algum conceito, contar uma história paralela por pura diversão e, adivinhem, ganhar tempo também. Com esse formato de serialização semanal ou mensal, às vezes o próprio autor precisa dar uma enrolada em alguma parte pois ele também precisa de um tempo para desenvolver melhor suas ideias na cabeça antes de colocá-las no papel.
A razão pela qual eu fiz toda essa longa explicação sobre o cânon e os fillers é exatamente para evitar qualquer um desses possíveis comentários tentando dar a definição de algo que eu já conheço bem. Mas também faço isso me preparando para potenciais reações a frase a seguir.
Ainda que esses termos sejam muito conhecidos e muito utilizados nas discussões entre fanbases, cânon e filler significam nada. Bom, esses termos tem significados no sentido que são palavras e palavras significam alguma coisa. Falo numa noção mais profunda onde tais termos não contribuem em nada para uma análise crítica daquilo que você está lendo, assistindo, consumindo. Não faz a menor diferença para a sua leitura se aquele episódio faz parte do cânon ou não uma vez que você olha a mídia como um todo e não somente as partes que lhe convém.
Portanto, nesse cenário, as nomenclaturas de cânon e filler são nada mais do que balela. Emprega-se apenas para aparentar que se está dizendo algo quando na verdade só está se apontando uma informação irrelevante para a leitura da obra. E falo que são irrelevantes pois 55 anos atrás Roland Barthes matou o autor!
A MORTE DO AUTOR (E POR EXTENSÃO A DO CÂNON)
A morte do autor é um conceito com grandes chances de qualquer pessoa ter ao menos escutado uma vez na vida. Podemos dizer coloquialmente que ele “furou a bolha”. O nome vem de um ensaio do crítico e teórico literário francês, Roland Barthes, que o publicou em 1968.
Se você tem curiosidade em conhecer o texto, aqui tem uma versão traduzida.
Por ser um ensaio cujo o nome as pessoas já ouviram em algum momento, é de se imaginar que ele é tão desconhecido quanto conhecido. Digo isso porque algumas vezes já vi gente usando o conceito para separar a obra um autor ou autora que passou a ser considerado “problemático”. Um dos casos mais recentes é com a J. K. Rowling, autora da série Harry Potter, que alguns fãs querem desassociá-la da obra por conta dos seus comentários em relação aos direitos de pessoas trans. Essa é uma polêmica que se estende por anos a ponto que possivelmente um dia terá sua própria página na Wikipédia.
Dá para argumentar que ensaio de Roland Barthes propõe uma separação do autor e da obra. Porém não é nesse contexto de controvérsias, uma vez que tal separação se aplicaria a todo e qualquer autor ou autora independente das polêmicas nas quais eles se envolveram. Mas ainda há outro mau-uso do conceito que já vi utilizarem e coincidentemente apareceu naquela discussão de One Piece.
Um segundo rapaz que veio debater, quando a morte do autor foi jogada no meio da thread, a definiu como “aquela ideia de que a autor deixa de ser dono da obra quando ela é lida por alguém“. Pode ser uma simplificação um tanto rasteira do argumento de Barthes, porém não dá para cobrar muita elaboração numa plataforma que você tem limite de 280 caracteres. O equívoco veio num questionamento que esse rapaz lançou logo após a sua explicação. Lá ele falou: “Mas se o autor deixa de ser dono da obra, o que impede que você pegue a obra dele e faça sua própria obra, que no caso falamos de mangás, e sai por ai vendendo como sua?“.
Pois bem, o erro aqui está em pressupor que o conceito da morte do autor está se referindo a autoria. Isso faria do ensaio uma espécie de manifesto antipropriedade intelectual. Só que esse não é o ponto no qual o Barthes tocou, a noção de propriedade aqui é em outro sentido. O que ele contraria é o uso da intencionalidade autoral na interpretação dos textos.
Quando ao final do seu ensaio o Roland Barthes diz que “o nascimento do leitor tem de pagar-se com a morte do Autor” ele está se opondo a uma corrente da crítica literária tradicional da sua época. Vale destacar que a crítica literária é área de estudo onde discute-se a interpretação da literatura, ou seja, a criação de diferentes leituras sobre a mesma obra. Para tal, muitos vão buscar os significados na suposta intenção daquele que produziu o texto. Prática essa que o Barthes condenava, achando que isso limitava a criação de novas percepções a cerca desse trabalho.
Com o conceito da morte do autor, coloca-se o leitor na frente do escritor, priorizando a interpretação individual de cada pessoa. O texto deve ser material mais do que suficiente para se criar uma leitura. Não há necessidade que o autor dê voz a qualquer outro pensamento uma vez que o texto já não está mais nas mãos dele. Se havia algo mais ele queria dizer, tais palavras deveriam constar dentro do texto e não fora dele. Portanto o que o Barthes nega não é a autoria do escritor e sim o uso deste como uma autoridade para se dar um significado definitivo a obra.
Inclusive é bom enfatizar essa palavra: definitivo. O argumento de Barthes também não diz que tendo o leitor a autonomia da sua leitura isso significa que toda interpretação é válida. A morte do autor não dita que tudo pode ser verdade, ela dita que não existe uma verdade absoluta revelada por uma autoridade divina que é o escritor.
Você na sua condição de leitor pode lançar sua leitura sobre determinada obra. Também eu na minha condição de leitor posso me contrapor a sua leitura e fornecer a minha própria. Tal como uma terceira pessoa, também na condição dela de leitora, pode recusar ambas as nossas visões e propor mais uma. Contudo nenhum de nós três tem o direito de puxar a carta do “o que o autor disse aqui foi” porque o autor não tem que dizer mais nada. Ele já disse, o texto está ali, o trabalho dele acabou. A responsabilidade da leitura cabe somente a nós.
Pois bem, embora eu não tenha um centésimo do conhecimento teórico da literatura que o Roland Barthes tinha, eu quero estender o argumento do ensaio pela morte do cânon também.
Hoje na cultura pop você não tem apenas obras. Não, isso é muito pequeno. Hoje tudo precisa ser uma franquia que acaba por se estender muito além do trabalho do autor original. Conforme mais obras são inseridas dentro desse universo ficcional, o fã vai se tornando uma pessoa cada vez mais neurótica. Pois além de amar e se devotar incondicionalmente uma propriedade intelectual, ele também precisa que exista uma ordem ali dentro e, mais do que isso, que essa ordem seja respeitada. Daí faz-se a santidade do cânon.
Há o argumento que o cânon existe para impedir que inconsistências ocorram no universo de uma determinada propriedade intelectual. Porém essa é uma ação inútil. Essas incoerências são naturais de qualquer obra, ainda mais aquelas que vão se expandindo sem fim. Se é impossível até para um único autor manter a consistência na sua própria história, imagina quando você reúne contribuições de diferentes autores, feitas em diferentes épocas para diferentes mídias? É inútil e diria mais, é idiota querer manter um cânon. Isso apenas remove a capacidade dos artistas de criar novas histórias e novos conceitos dentro daquele universo por conta própria, pois tudo tem que estar amarrado a um canôn consistente.
Voltando ao rapaz que eu sigo, por isso que ele fala que não se deve pensar no animê de One Piece com base no mangá. Um não carrega qualquer autoridade sobre o outro, a adaptação não precisa do aval do original para existir. Um animê não tem obrigação de pertencer ao cânon criado nas páginas do mangá. Se existe essa impressão é porque muito se acostumou fanbases em geral que essas novas versões precisam estar mais próximas o possível do original, tirando qualquer autonomia dos artistas responsáveis pela nova produção de criar algo em cima do que já existe.
O animê tem sua própria história, seu próprio universo, seus próprios significados. Ele pode até dever ao mangá a inspiração para seus elementos principais, porém ele não tem qualquer compromisso de reproduzir fielmente o que já foi entregue ao público. Isso limita tanto novos artistas quanto leitores de produzirem novas leituras porque devem se fixar a regras pré-determinadas para não ferir o tão sacramentado cânon.
Agora um questionamento que talvez esteja na sua cabeça desde o inicio do texto:
O QUE METRO 2033 TEM A VER COM ESSA HISTÓRIA?
ATENÇÃO
Spoilers de Metro 2033 e Last Light
Uma característica dos vídeo games é que muitos fornecem diferentes escolhas e rotas nas quais o jogador pode seguir e que, por vezes, gera uma história com múltiplos finais. No geral são meros desfechos com alguns detalhes diferentes, porém existe a possibilidade de alterar a sua percepção da jornada de acordo com a conclusão. Por exemplo, Silent Hill 2 pode se transformar num arco de redenção, de ruína ou de negação dependendo da forma como você joga que te levará para um final diferente.
Por conta disso desenvolveu-se essa cultura de definir esses finais como good/bad ending. Além disso, em alguns casos que existe o true ending que convenciona-se como o final canônico do jogo. Muitos jogos acabam tendo sequências e, a não ser que cada um seja uma história independente como Final Fantasy, os desenvolvedores terão que se comprometer com um dos desfechos do jogo anterior. Metro 2033 é um desses casos.
Tanto o jogo quanto o livro contam a história de Artyom, que vive numa Moscou pós-apocalíptica onde uma guerra nuclear levou as pessoas a se esconderem nas estações de metrô. O que sobrou da humanidade tenta se reorganizar para sobreviver dentro desses túneis subterrâneos. Contudo novas tensões surgem por conflitos internos e também por ameaças externas. Dentre elas estão os Dark Ones, misteriosas criaturas que vem atacando a estação em que Artyom vive, que põe em risco todo o Metro.
Artyom então vai até uma das maiores e mais bem preparadas estações, Polis, onde se une a um grupo de rangers, a Ordem Espartana. Eles planejam disparar antigos mísseis de uma base secreta no local onde os Dark Ones vivem. Porém Artyom precisa subir até o alto da Torre Ostankino para dar as coordenadas de ataque ao restante da equipe na base.
Esses são os pontos em comum entre as duas versões. A jornada de Artyom leva ao mesmo lugar em ambas as histórias, porém cada uma tem suas particularidades. Fixando-se no final, enquanto os mísseis disparam, Artyom finalmente percebe que os Dark Ones não estavam atacando os humanos. Na verdade eles buscavam alguém com quem pudessem estabelecer contato através das suas habilidades psiquícas. Porém todas as tentativas resultaram em violência por conta do medo que os humanos tinham dessas criaturas.
Esse é o final do livro e jogo também pode terminar desse jeito. Notem: pode. A adaptação aproveita para adicionar uma nova camada ao original dando a chance do jogador habilitar um desfecho diferente para Metro 2033. No jogo existe um sistema por trás da gameplay que vai acumulando “pontos morais” dependendo das suas ações. Conseguindo uma quantidade suficiente de pontos, é concedida uma escolha nos instantes finais do jogo. Quando você está no alto da Torre Ostankino, Artyom tem a chance de atirar na mira laser que envia as coordenadas para o disparo dos mísseis. Assim os Dark Ones são poupados, deixando implícito que a humanidade aprenderá a coexistir com eles.
Esse não é o final canônico. Não apenas porque ele difere do livro, mas porque anos depois Metro 2033 teve uma sequência, Metro: Last Light. Os eventos desse jogo se passam um ano após o anterior e leva em consideração o final em que os Dark Ones pereceram. Assim a nova jornada de Artyom é marcada por uma grande culpa pelas suas ações que levaram ao extermínio de toda uma raça inocente.
Last Light também tem o mesmo sistema de pontuação que ao final da história habilita um segundo final. O jogo pode terminar com Artyom explodindo a base secreta de D6 para que o exército da Linha Vermelha não tenha acesso as armas escondidas lá e, com seu sacrifício, ele impede que as demais estações de Metro sejam destruídas. Ou então o jogo pode acabar com os Dark Ones sobreviventes vindo em auxílio aos humanos e ajudando-os a derrotar o exército inimigo sem que mais destruição seja causada. Como existe um terceiro capítulo nessa franquia, Metro: Exodus, vocês podem imaginar qual é o true ending.
Então, para aqueles que conhecem o universo de Metro através dos jogos, a história canônica segue com o final padrão de 2033, o final alternativo de Last Light e qualquer que seja o true ending de Exodus (ainda não joguei e não pretendo buscar informações sobre). Contudo os outros finais ainda estão ali. Independente de como a trilogia se desenrolou, todos os outros finais ainda fazem parte do texto. Por texto eu não me refiro a roteiro, digo sobre o conteúdo do jogo. Eles não deixam de perder qualquer valor só porque os jogos decidiram seguir a linha do tempo X e não Y. Esses finais ainda produzem significados e assim permitem leituras diferentes da história que por si só são válidas.
Vamos analisar:
Um dos temas de Metro 2033 é a natureza autodestrutiva da humanidade que até mesmo depois do fim do mundo continua perpetuando sua própria extinção. O que restou da sociedade em vez de colaborar entre si para garantir que a humanidade consiga sobreviver acaba se dividindo novamente – por ideologias, ganância, preconceitos e medos – trazendo a guerra daquele mundo que deixou de existir para dentro desse novo mundo que se formou. Ao mesmo tempo, existe um segundo tema paradoxal nessa história que é a perseverança do espírito humano ante a todos esses obstáculos. Ainda que existam aqueles que parecem querer por um fim a sua própria espécie, os humanos em geral continuam tentando existir. Por mais que o mundo tenha se tornado um lugar praticamente inóspito, a humanidade segue existindo em meio a hostilidade do exterior e a beligerância dos seus conflitos internos.
Cada um dos finais do jogo fortalece um desses temas. O final canônico por exemplo, nos coloca dentro de uma perspectiva fatalista. A humanidade está destinada a cometer os mesmos erros dando continuidade ao seu ciclo de destruição. O final alternativo, por outro lado, nas dá a oportunidade de buscar um caminho mais idealista, no sentido mais coloquial do termo, no qual podemos aspirar a evoluir e quebrar esse ciclo. Se o jogo me permite seguir por essas duas rotas, porque eu vou me negar a ter uma interpretação idealista de Metro 2033? Só porque a sequência dita que que o final “correto” é o fatalista? Até mesmo quando a própria franquia reconhece a validade dessa interpretação? Afinal, em Last Light o final canônico é justamente aquele segue pela via idealista e não cai novamente no fatalismo do primeiro jogo.
O cânon não importa nenhum um pouco porque o que te faz conectar com uma obra não é como ela se encaixa num universo maior. São os valores que a história te apresenta, os sentimentos que ela desperta em você, as indagações e questionamentos que ela te instiga, a introspecção na qual ela te lança.
Metro 2033 apesar de ter a mesma premissa do original, diverge dele em vários pontos. Coisas estabelecidas no livro são descartadas em benefício da gameplay, como o fato dos humanos não poderem ir para a superfície de dia porque a luz machucaria seus olhos. As balas de ouro que são usadas como moeda também não existem. Personagens-chave do livro como a seita da Grande Minhoca, os revolucionários que salvam Artyom dos nazistas e até mesmo a pessoa que lhe dá as instruções para chegar nos mísseis não estão presentes no jogo. O mesmo vale para sequência já que Last Light não é remotamente próxima do segundo livro, Metro 2034. Já começa que o Artyom nem é o protagonista. O livro segue com o Hunter, que nos jogos permaneceu como desaparecido.
Aí eu pergunto, mesmo como todas essas diferenças dos livros, isso impede os gamers de gostarem dos jogos? Um sonoro não! Está vendo como o cânon pouco importa para a sua relação com as outras mídias que derivam do original? Voltando ao evento que despontou esse texto, é bobeira achar que uma cena do animê perde valor só porque não consta no mangá. É só um preciosismo barato que mais parece querer fazer um gatekeeping do que manter a coerência dentro do universo, impedindo que novas ideias e vozes sejam adicionadas na obra.
Eu digo com toda convicção que o cânon tem sua maior utilidade quando morto. É um conceito inútil para o leitor, supervalorizado por aqueles que tem uma visão muito limitada do que a arte pode alcançar e defendido por covardes que parecem não saber apreciar uma obra sem que alguém lhes diga qual é o jeito correto de interpretá-la.
Então se o autor já está morto, cavem uma cova um pouco mais funda e atirem o cânon lá dentro!
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Sera meio complicado, para mim, fazer um comentário, uma vez que a minha visão é quase que completamente oposta a quase todos os pontos, mas ai vai.
Um fator importante é que o conceito de Filler originalmente não significava “coisa não-canônica”, mas sim apenas “parte da historia que só serve pra encher linguiça sem acrescentar nada”, ele apenas passou a significar “coisa não-canônica” pois, por definição, conteúdo não-canônico criado apenas para “ganhar tempo” não poderia acrescentar nada sem que retirasse ao final para não criar conflito com o que estava tentando se adaptar.
Se a mera “não-canônicidade” fosse um problema, ninguém assistiria filme de anime, e igualmente eu nunca vi alguém “relevar criticas” ás prequels de Star Wars apenas por elas terem sido feitas pelo George Lucas.
Logo, não se trata do uso de duas lógicas diferentes, mas da mesma lógica: As pessoas tendem a odiar fillers pelo mesmo motivo que você odeia episódios de recap ou pelos mesmos motivos de todos odiarem “cash-grabs”.
O ponto central é que, bem, eu ODEIO “morte do autor”. Na minha visão sobre arte é algo absurdo: Ora, se um critico na hora de estudar um quadro irá pesquisar o contexto histórico do mesmo, as tradições que segue, buscará outros trabalhos do mesmo autor e irá se questionar “O que será que o levou a fazer está pintura como fez?”, por que o mesmo não deveria ser feito com uma obra atual? A arte não existe num vácuo, negar isso é que seria limitar a mesma a ser apenas “fotografia, só que com tinta”.
Em qualquer museu de arte (Principalmente contemporânea) que se vá, haverá, do lado da obra, uma placa explicando seu contexto, o pensamento de que ela por si só deveria explicar tudo é meramente uma ilusão, visto que muitas vezes foi feita apenas para ser entendida por pessoas de uma certa época, ou de um certo nicho (E tudo bem).
Você pode achar valor em algo não-canônico de uma obra, mas isso não o coloca no mesmo nível de algo canon, pelo simples fato de que canon nunca foi sobre “qualidade ou tirar algo dele”, mas sim sobre um conjunto de regras que a obra pretende seguir (Existe um motivo pelo qual “deus ex machinas” são considerados algo ruim). Se o autor quiser, ele pode lançar um spin-off onde quebra as próprias regras pois acha que algo interessante pode sair disso (Filmes de anime costumam ser justamente isso).
Você pode ter uma interpretação “errada” de uma obra que seja ótima, inspiradora, rica, artística, que mude a sua vida, porem a interpretação continua errada, pelo mesmo motivo que eu me curar de uma doença tomando placebo não o faz um remédio. Se você foi salvo, pouco importa se a pessoa te salvou por acidente ou não: Você foi salvo! Se uma interpretação da obra traz uma mensagem que, mesmo não sendo a que o autor quis passar, traz algo de valor artístico e reflexivo, então essa interpretação tem o direito de existir. Não obstante, continua não sendo a interpretação canônica (E, novamente, está tudo bem com isso!).
O fato de Dark Souls ter penalidades por você ter um equip load muito alto é algo que limita muito o numero de builds do jogo, mas ainda assim: Que bom que isso existe.
Todos os pontos que você fez eu já expliquei no texto, então vou me limitar a comentar apenas dois:
– “O ponto central é que, bem, eu ODEIO “morte do autor”. Na minha visão sobre arte é algo absurdo (…)”
Tudo bem você odiar o conceito, porém ele não é sobre o que você está comentando. Em momento algum a morte do autor diz que você não pode pesquisar a história da época, a escola literária/artísticas que a influenciou, as técnicas, etc. A morte do autor se opõe a esse pensamento de querer identificar a intenção do autor e usa-la para estabelecer uma leitura definitiva sobre o que aquela obra significa. Pois a leitura pertence ao leitor e o autor não tem qualquer direito de tentar influenciá-la além do que ele inseriu na sua obra. Mas ainda assim você pode discordar do conceito, ele só está propondo uma escola de pensamento, cada um segue o que quer.
– “(…) o pensamento de que ela por si só deveria explicar tudo é meramente uma ilusão, visto que muitas vezes foi feita apenas para ser entendida por pessoas de uma certa época, ou de um certo nicho”
Novamente, não é isso que foi dito e ainda subestima muito o alcance da arte além do seu tempo e público. A leitura deve competir ao conteúdo que está mostrado dentro da obra e não a informações que foram dadas sobre a mesma fora dela. Não tem nada a ver sobre ignorar o contexto da época e sim sobre interpretar aquilo que está contido ali naquele livro, naquele quadro, naquele filme, sem a influência do que foi revelado após ele ser concluído (e não estou falando sobre sequências, ok?). Em outras palavras, você não passa a interpretar uma fala ou um personagem por algo que o autor disse numa entrevista, numa rede social, numa biografia, etc. Como eu disse no ponto anterior, a palavra do autor não dita como algo tem que ser interpretado porque a leitura pertence somente ao leitor.