Faz um tempinho que saiu o aguardado Senua’s Saga: Hellblade II, continuação de Senua’s Sacrifice. A sequência não chegou a ser um divisor de opiniões, porém houve algumas dissonâncias a respeito dela. Um dos criticismos que vi se repetir com frequência é que o jogo seria muito curto, tendo algo em torno de “apenas” cinco horas de duração. Só que esse não é um texto sobre Hellblade II e sim sobre Grimm’s Hollow.
E o que seria Grimm’s Hollow? Quem acompanha o blog deve ter notado que eu voltei a falar de RPG Maker nas últimas semanas. Primeiro fiz um texto aqui sobre LISA: The First e logo depois fiz um artigo sobre Space Funeral. Enquanto eu escrevia esse último texto, eu estava jogando Grimm’s Hollow que baixei há muito tempo. Ele é um RPG feito no RPG Maker 2k3 por Mahum ‘ghosthunter’ Najam. Na história, você controla uma garota, Lavender, que se encontra um dia no que seria a vida após a morte.
Você pode baixar Grimm’s Hollow
gratuitamente na Steam ou no Itch.io
Antes de entrar na discussão, vou deixar aqui uma sinopse para quem tiver interesse em jogar:
Lavender acorda num dia num lugar estranho, Hollow, em meio a várias pessoas encapuzadas. Lá ela conhece uma entidade chamada Grimm que ela está morta e ali é onde vão parar todas as almas que ainda não estão prontas para concluir a passagem para o pós-vida. Grimm diz que, dependendo da força, algumas almas se transformam em fantasmas e outras em ceifadores. Estes têm a missão de caçar e ceifar os fantasmas para que eles atravessem para o outro lado e coletar a energia espiritual que deixam para trás. Ao coletar energia suficiente, um ceifador pode então também terminar a passagem. No começo, Lavender reluta um pouco para acreditar em Grimm. Porém, ao descobrir que seu irmão Timmy também foi parar em Hollow, a jovem parte a sua procura antes que um ceifador o encontre e tenta encontrar uma forma de tirá-lo daquele lugar.
Eu não sei ao certo como vim a conhecer esse jogo, porém pouco importa. Gostei muito de Grimm’s Hollow e por vários motivos. Primeiro porque eu adoro histórias que tenham temas sobre espíritos, vida após a morte, reencarnação, etc. Segundo a direção artística de Grimm’s Hollow que me encantou pelo uso das cores, o design dos inimigos e, sobretudo, alguns desenhos utilizados para se criar algumas cutscenes. E terceiro porque o ghosthunter adicionou um detalhe peculiar no sistema de batalha do jogo e eu sempre gosto quando tentam fazer algo diferente no RPG Maker. Acredito que ele teve inspiração em Undertale, ainda mais que os dois têm um tom e um estilo de humor parecido.
Por usar o RPG Maker 2k3, Grimm’s Hollow tem como sistema de luta o famoso Active Time Battle de Final Fantasy. O diferencial é que quando você ataca aparece uma barra com um cursor móvel. Você precisa acertar o timing para aumentar a efetividade do seu golpe e a mesma mecânica serve também para se desviar de alguns ataques especiais. Não tenho a menor ideia de como o ghosthunter conseguiu fazer isso e, mesmo que não seja um sistema perfeito, a sua mera inclusão já é algo que me faz recomendar que testem o jogo.
Apesar de tudo isso, o mais importante (para os fins deste texto) em Grimm’s Hollow é que esse é um jogo bem curto.
RPG Maker e jogos curtos são palavras que andam juntas com muita frequência. Como mencionei no meu texto de Saint Seiya RPG: Asgard Chapter, a maior parte dos projetos são desenvolvidos por “um exército de um homem só”. Até que alguns makers conseguem ajuda em algumas áreas – o ghosthunter, por exemplo, contou com dois compositores para fazer a trilha de Grimm’s Hollow – mas o grosso do jogo, no geral, fica nas costas de um único desenvolvedor. Fora que por se tratar de uma comunidade bem nichada, onde a maioria dos títulos nem conseguem ser comercializados, não existe muito incentivo para investir tempo e energia com jogos mais longos. Aliás, isso é algo que torna a trilogia Legion Saga ainda mais fascinante por termos uma série completa que é pouco comum nesse mundinho maravilhoso do RPG Maker.
Se tratando do tamanho, Grimm’s Hollow não é nenhuma exceção com mais ou menos duas horas de gameplay. São apenas três dungeons, alguns chefões e até uma variedade impressionante de inimigos. Geralmente eu não fico pensando na duração de um jogo porque acho um aspecto irrelevante para a minha experiência. Tanto que a ideia original era apenas fazer uma review rápida aqui sobre ele para destacar o sistema de combate. Contudo calhou de acontecer esse papo sobre Hellblade II pouco tempo depois de eu zerá-lo, o que me motivou a refletir sobre como o tamanho de Grimm’s Hollow talvez seja um dos seus pontos mais fortes.
Mas não me entendam mal, o jogo tem muitas outras qualidades. Como já falei, adorei a direção artística e também achei ele narrativamente muito tocante, além da jogabilidade mostrar criatividade e bastante empenho para dar ao jogo um estilo mais ou menos próprio. Não é nem um ótimo jogo “de RPG Maker”, é um bom jogo e ponto!
Só que no atual contexto da indústria e da comunidade de vídeo games eu noto que existe um problema cada vez maior sobre a relação duração x preço de um jogo. Não quero desconsiderar as críticas sobre a gameplay de Hellblade 2, são válidas, mas me chama atenção esse destaque que deram para o fato do jogo ter um pouco mais de cinco horas e não é a primeira vez que vejo isso acontecer.
Dá pra fazer uma discussão longa sobre o tema e pretendo dedicar um texto especificamente a isso no futuro. Por enquanto vou me limitar a dizer que o que vem pesando é a angústia do gamer em frente a um produto que fica cada vez mais caro. Sendo assim, ele precisa buscar justificativas que o convençam que os jogos serão um bom investimento do seu dinheiro já que não existe qualquer expectativa deles baratearem. A forma mais simples – e ao meu ver mais tosca – é fazer uma conversão de horas de gameplay por preço. Ou seja, seguir uma lógica que um jogo por ser mais caro precisa também ser mais longo. Porém não acho que esse seja o único fator.
Nesse cenário que eu descrevi, Grimm ‘s Hollow não seria um problema. O ghosthunter o distribui gratuitamente tanto na Steam quanto na Itch.io. Imagina-se que assim valeria o ditado “a cavalo dado não se olha os dentes”, certo? Mesma coisa com outro jogo que mencionei aqui, Space Funeral, que você também pode baixar no perfil do seu desenvolvedor. Porém, nesse último caso, eu já me esbarrei com reclamações que o jogo é muito curto mesmo considerando que ele funciona mais como comentário do que como jogo.
E aí eu acho que a discussão do tamanho ganha uma segunda camada. Não é apenas que as pessoas não gostam de jogos curtos por causa do preço, é que também os subestimam. Pode até ser uma impressão errônea minha, porém acredito que pessoas em geral acham que histórias mais curtas são muito simples ou então que não conseguem se desenvolver tão bem quanto as mais longas.
Vou fazer um desvio rápido porque recentemente eu vi Pateta: O Filme, baseado na série A Turma do Pateta. O roteiro equilibra esquetes ao estilo desenho matinal, sequências musicais e ainda é um ótimo drama de pai e filho. O detalhe é que essa é uma animação com menos de uma hora e meia de duração e mesmo assim é uma história muito bem construída e contada. Uns 20 minutos a mais ali não fariam a menor diferença, pois o filme sabe utilizar cada um dos seus minutos. A relação e o conflito entre o Pateta e o Max é introduzido, desenvolvido e resolvido sem deixar a sensação que faltou um pouco mais de tempo para compreender esses dois personagens.
É a mesma coisa que eu falei sobre Sand Land do Akira Toriyama. Essa também é uma obra que considero que não tem desperdícios, nem de uma página sequer. Cada elemento é calculado com precisão para aquilo que a história precisa. Porém, eu já vi gente dizendo que é simples demais e assim não dá para tirar uma discussão mais profunda desse mangá. O que é uma besteira e quem duvida é só assistir o vídeo do Ilha Kaiju sobre a obra. Mesma coisa sobre o filme do Pateta que tem gente que vê só como uma esquete muito longa, mas aqui tem o Cinema Therapy usando a animação pra falar sobre reconciliação.
Enfim, tudo que eu quero dizer com esses exemplos é que não se deve duvidar da capacidade de histórias mais curtas. No final é sempre uma questão de interpretação. Um filme de menos de uma hora e meia tem pode te fazer refletir que a de um com quase três horas. Um mangá com um único volume consegue criar um universo e personagens tão memoráveis quanto a de um com mais de 50 volumes. Da mesma forma, um jogo com apenas duas horas de gameplay pode marcar tanto quanto um que passa da margem das 60-70 horas. Porque o valor, se tratando dessas mídias, é subjetivo e não se traduz necessariamente pelo tamanho da obra.
E aí eu volto para Grimm’s Hollow!
Com as devidas proporções, eu diria que Grimm’s Hollow tem uma precisão matemática tal como a de Sand Land. O ghosthunter não se perde enchendo de detalhes do mundo de Hollow e estabelece somente os conceitos e temas mais necessários para a trama funcionar. Você tem ali as dinâmicas entre fantasmas e ceifadores, como esse pós-vida opera e a história se foca num grupo bem limitado de personagens. Ao todo são três: Lavender, Timmy – irmão da Lavender – e Baker. Também temos os Grimm, porém considero ele mais uma ferramenta do roteiro para introduzir e explicar a lógica daquele universo.
Simbolicamente, enquanto temos três personagens centrais, temos três dungeons que criam uma divisão bem clara na progressão do jogo em três capítulos. A primeira tem a função óbvia de ensinar o jogador sobre as mecânicas de Grimm’s Hollow. Além disso, é no final dessa dungeon que Lavender encontra o espírito do seu irmão que Grimm disse que morreu junto com ela. Contudo há um diferencial, o fantasma de Timmy tem uma alma, um item necessário para que espíritos possam ressuscitar em vez de concluir a passagem, e que foi roubada por outro fantasma quando ele chegou em Hollow. Então a partir desse momento temos o conflito principal do jogo que é Lavender escondendo o seu irmão dos outros ceifadores enquanto tenta recuperar sua alma para que ele possa voltar para a Terra.
Daí partimos para a segunda dungeon onde somos acompanhados o tempo todo por Baker, que a princípio parecia apenas compor um elenco de apoio. No final desta, existe uma longa pausa na gameplay em que Lavender e Baker ficam conversando a respeito da vida deles antes de chegarem ao Hollow. É nesse momento que passamos a entender melhor os efeitos daquele mundo nos ceifadores e, principalmente, no Baker. A gente percebe que apesar da faceta mais animada dele, fica implícito que o personagem tem no fundo uma melancolia por já estar tanto tempo naquele lugar.
Algumas reviravoltas acontecem ao fim dessa dungeon, que eu não vou entrar em detalhe, e assim a gente passa para o capítulo final. No meio da última dungeon ocorre outra longa pausa onde vemos os irmãos conversando sobre a vida deles no passado, sobretudo a relação de Lavender com a mãe. É o momento em que a personagem se mostra mais vulnerável e que também funcionará como um contexto para outras informações que recebemos mais a frente.
Não vou spoilar o final, mas gostaria de comentar que Grimm’s Hollow tem quatro desfechos que dependem de você derrotar ou não o último chefe e se o espírito de Lavender estiver ou não completo. Por completo significa ter evoluído todas suas habilidades e atributos. Naquele que é considerado o Best Ending há uma mudança na narrativa. A gente passa o jogo todo seguindo pelo ponto de vista da Lavender, porém a narração desse final é feita pela perspectiva do Timmy. Esse desfecho dá um novo significado a história que eu achei particularmente interessante.
Há um bom tempo surgiu aquele meme do “jogo indie inspirado em Earthbound sobre depressão” e é muito fácil colocar Grimm’s Hollow nessa caixinha por conta do seu tom. E como eu falei, existe uma melancolia perceptível em personagens como o Baker e depois também na Lavender. Porém, quando concluímos a história, percebe-se que o jogo está comentando muito sobre a relação entre irmãos mais velhos e os mais novos.
Na cultura pop, principalmente em comédias, tem aquele tema recorrente da rivalidade de irmãos e irmãs, onde geralmente os mais velhos ficam implicando com os mais novos. Entretanto, uma tomada que eu prefiro mais é quando eles exploram a responsabilidade e o sentimento de proteção entre eles. A gente vê muito isso em Lavender, já que tanto a história dela nos eventos do jogo quanto no background da personagem é sobre como ela tenta garantir que o Timmy tenha uma vida feliz apesar das adversidades.
Já deve ter quase umas duas semanas que eu joguei Grimm’s Hollow e sigo pensando muito nele. Tal como Lisa: The First e Space Funeral que joguei antes dele. Se somar o tempo que passei em todos eles não deve dar mais do que seis horas. São três histórias relativamente simples, cada uma com um propósito diferente mas que dividem um ponto em comum: todas me marcaram profundamente!
Por isso que eu acho um pensamento errado querer atribuir valor a um jogo, ou qualquer outra mídia, apenas pelo seu tamanho. Consigo até compreender querer associar o preço, mesmo que eu discorde dessa mentalidade por motivos que devo explorar num texto no futuro. Mas o valor não. Valor jamais! Quando eu vejo alguém dizendo que o jogo tem apenas X horas, com tom pejorativo, eu fico com a impressão que essa pessoa não consegue engajar com uma obra para além de um entretenimento superficial. Isso reduz jogos apenas a passatempos corriqueiros que dificultam discutir essa mídia com mais profundidade.
Quer reclamar do preço? Vai fundo. É seu direito como consumidor. Porém encarar jogos curtos como uma qualidade inerentemente negativa, é subestimar em muito o valor que essas obras podem carregar.
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É interessante como dependendo da mídia ter um tamanho menor pode ser algo que, pelo contrário, denota valor. Na literatura a lógica é essa, o poema é valorizado exatamente por ser curto e, até por isso, ser infinitamente mais rico, experimental e subjetivo.
Tem uma citação do Borges que é uma grande crítica nesse sentido:
“Escrever livros longos é um ato trabalhoso e empobrecedor de tolices: expandir em quinhentos páginas uma ideia que poderia ser perfeitamente explicada em poucos minutos. Um procedimento melhor é fingir que esses livros já existem e oferecer um resumo, um comentário.”
Resta saber quando os consumidores de jogos vão alcançar esse amadurecimento, se um dia alcançarem, e perceber o quão mais livre é o desenvolvedor de um jogo de 2 horas do que o um de 100 horas. O primeiro pode experimentar, não tem tanto medo de errar porque o “investimento” é muito menor, já o segundo acaba ficando muito mais preso no que ele já sabe que funciona.
Pelo andar da carruagem eu acho que vai demorar muito pro vídeo game chegar nessa reflexão. Pessoal opera muito na lógica que jogo é um investimento, do ponto de vista do consumidor não só da empresa, então fica naquela que se vai pagar X tem que receber Y horas de gameplay. E aí a gente cai em jogos gigantes que tem seu conteúdo artificialmente inflado por meio de sidequests repetitivas, centenas de colecionáveis e por aí vai. Enquanto isso jogos como Grimm’s Hollow focam naquilo que é mais essencial para a ideia que desenvolvedor quer transmitir
Eu amo seus textos. Eu queria que quem se diz entendido de videogame lesse seus textos pra ver o que é uma análise de verdade ou ensaio sobre o que o jogo tá tentando falar. Continue assim!
Infelizmente os caras tão muito ocupado comparando íris de personagens de joguinhos porque isso que é games de verdade!
Já joguei Grimm´s Hollow, ele é muito bom mesmo.
Só as pessoas de cultura frequentando o blog!