Ufa, esse texto quase não saiu! Peguei um bloqueio criativo fodido quando comecei a escrever e precisei iniciar um segundo para sair dele. Agora está tudo resolvido e finalmente vou conseguir falar o que eu queria sobre Metro 2033 com vocês!


No início de agosto eu publiquei um texto falando sobre Castlevania: Nocturne, a nova série animada da Netflix. O que me levou a escrevê-lo foram algumas das reações negativas. Nenhum problema com alguém desgostar de um trailer, meu problema foi com os motivos. Muita gente só estava criticando por conta das alterações que o desenho fará em relação ao jogo. Vários dos comentários reclamavam mudanças pelo simples fato de serem mudanças. Isso é um padrão que se repete com frequência e eu discordo veementemente dele.

Entre os fãs, parte deles pelo menos, ainda persiste uma mentalidade que a fidelidade ao original é sinônimo de qualidade. Quase nunca param para pensar que existem coisas que simplesmente funcionam numa outra mídia e terão que ser alteradas de um jeito ou de outro. Isso não significa que toda mudança será positiva, só que precisamos estar abertos a algumas concessões entendendo que por vezes isso é necessário. E se for envolver vídeo games, aí que você vai ter que alterar muita coisa mesmo!

Depois de fazer aquele texto, me deu vontade de expandir a discussão como já aconteceu em outras ocasiões. Para isso eu queria um bom exemplo de uma obra cuja versão original e a sua adaptação tem muitas diferenças entre si, mas que ambas são bem quistas. Foi então que olhando para minha estante eu vi a cópia que adquiri esse ano de Metro 2033, livro de Dmitri Glukhovski. Era o exemplo perfeito que eu procurava.

Minha cópia em inglês de Metro 2033
Participação especial de Meninos Sem Pátria pra uma representatividade brasileira

Acredito que todo mundo aqui conhece a trilogia dos jogos de Metro – 2033, Last Light & Exodus – feitos pelo estúdio 4A Games entre 2010 e 2019. Maioria das pessoas conhece a franquia por conta dos jogos, porém eu vim pelo livro. Bom, mais ou menos. Um conhecido na faculdade uma vez comentou sobre a história dele. Eu até tentei encontrar uma cópia, porém por questões de orçamento não obtive sucesso até esse ano graças a Amazon. Por isso a minha porta de entrada teve que ser os jogos e foi assim que eu me apaixonei pelo universo melancólico de Metro.

Como alguns anos atrás a Steam deu Metro 2033 – o primeirão mesmo, não a versão Redux – de graça, havia aqui uma ótima oportunidade ótima de revisitar o jogo. Assim todos os planetas se alinharam para produzir esse Double Down onde falarei das duas versões. As duas compartilham a mesma essência, porém cada obra tem uma abordagem diferente para contar a história.

O interessante de se ver aqui é que cada mídia (cinema, série, literatura, HQs, jogos, etc) tem uma linguagem própria. Para muitos isso significa que elas tem seus prós e contras. Por um tempo eu pensei assim, entretanto com os anos eu mudei de ideia. Atualmente, enxergo que nessas mídias o que existe são formas diferentes de se expressar. Cada artista escolhe a que, na visão dele, se adequa melhor a história que quer contar. Foi assim que eu parei de acreditar que existem histórias que só funcionam num determinado formato. Elas podem sim se beneficiar melhor de uma linguagem particular, porém outro artista pode contar essa mesma história ao seu modo na sua mídia.

Portanto, não esperem que vá fazer uma análise de “qual é a melhor versão”. Acho isso uma bobeira e ainda que gostasse desse tipo de coisa não seria a proposta do texto. O que eu quero hoje é demonstrar como as mudanças são significativas para criar um valor própria nas adaptações. Afinal eu sou da crença que, se você quer algo parecido com o original, reveja o original! Conhecer o livro de Metro 2033 esse ano me fez apreciar ainda mais o jogo, exatamente pelas diferenças entre ambas as versões que me deram duas experiências diferentes embora fosse a mesma história em partes.

METRO 2033: O LIVRO

Essa não será uma crítica do livro per se. Nesse tópico o que pretendo mais é destacar alguns pontos que serão importantes na hora de discutir as adaptações feitas no jogo. O primeiro é o mais óbvio, está até no título do tópico, que é o fato de Metro 2033 começar como um livro. Sendo assim uma coisa que o seu autor pode se dar ao luxo é de desprender mais tempo para fazer descrições e diálogos que se estendem por páginas. Livros são formatos perfeitos para se fazer longas divagações e, meu Deus, como Metro 2033 divaga. Falo isso como um elogio, ok?

Capa do livro de Metro 2033 escrito por Dmitri Glukhovski

A premissa é de conhecimento público. A história se passa num futuro distópico em que uma guerra nuclear fez com que as pessoas buscassem abrigo nos túneis subterrâneos do metrô de Moscou. Passadas duas décadas, a superfície permanece um lugar hostil tanto pela radiação quanto por criaturas mutantes. O que sobrou da civilização russa tentou se reorganizar nas estações, contudo novas facções surgiram dentro do Metro que deram continuidade aos conflitos do “mundo antigo”. Artyom, o protagonista, vive numa das estações mais fronteiriças com a superfície que goza de relativa paz. Porém, quando misteriosas criaturas, os Dark Ones, aparecem na estação, Artyom recebe a missão de ir até a grande estação de Polis para avisar da ameaça que põe em risco todo o Metro.

Hunter dando a missão a Artyom de ir até Polis para avisar da ameaça dos Dark Ones
Não vou ficar tirando foto das páginas, então considerem isso uma licença poética

Depois de um longo capítulo introdutório – que dura 23 páginas – o autor usa a jornada de Artyom como uma oportunidade para falar dezenas de temas de seu interesse envolvendo questões sociais, políticas e filosóficas. Teria que fazer um texto específico só para lista cada tópico de Metro 2033. Cada região que o protagonista visita apresenta algum novo personagem que abre espaço para um novo tópico ser discutido. Mas se formos falar no senso geral, o livro possui dois temas centrais nas sua história toda.

O primeiro fala sobre a natureza autodestrutiva da humanidade. Mesmo depois do fim do mundo, os humanos não conseguem coexistir pacificamente e revivem velhos conflitos por diferenças ideológicas, preconceitos, ganância – por recursos, poder ou ambos – e, acima de tudo, medo. Guardem bem essa palavra que ela será importante no próximo tópico. E o segundo vem paradoxalmente mostrando a perseverança do espírito humano. Mesmo nas situações mais desesperadoras existem aqueles capazes de se adaptar e lutam para que a humanidade consiga seguir em frente.

O livro possui passagens extensas onde a trama e o protagonista se movem com bastante calma. Existe toda urgência da ameaça dos Dark Ones, mas é um ritmo narrativo bem lento quase que parando. Não é que coisas não acontecem, a jornada de Artyom é recheada de contratempos que fazem a história parecer uma odisseia subterrânea. Mas leva bastante tempo para sairmos de um ponto da história para o seguinte. Aqui eu elogio a capacidade Dmitri de fazer um cenário em que se esperaria muita uniformidade, já que são estações de metrô, aparentar uma diversidade imensa. Ele nos consegue fazer distinguir as dinâmicas de cada estação de modo que você fica com a impressão de estar vendo um mundo em muito maior escala, dotado de locais diversos, quando estamos apenas indo de uma estação de metrô para outra.

É uma leitura que requer muita paciência, fora que boa parte do panorama histórico e político russo vai passar batido para nós os leitores brasileiros, a não ser que você seja uma das seis pessoas no país que estudou isso. Mas a atmosfera, a jornada angustiante do protagonista e os temas que o autor discute aqui fazem valer a dedicação em cada uma das suas páginas.

METRO 2033: O JOGO

Capa da primeira versão do jogo de Metro 2033, feito pela 4A Games

Aqui eu farei algo um pouco diferente do tópico anterior, porque não falarei exclusivamente do jogo. Em vez disso, minha ideia é um bate-volta entre o original e a adaptação. Novamente reforço que isso não é para definir quem é o que melhor, ainda que algumas comparações sejam feitas. Minha intenção é mostrar como o jogo adapta ou altera os elementos apresentados no livro para criar a sua própria versão da história e do universo criado pelo Dmitri Glukhovski.

Se fôssemos ter uma “adaptação fiel” – para aqueles que ainda acham que fidelidade é o que torna uma adaptação boa – o gênero mais apropriado para Metro 2033 seria o pejorativo walking simulator. Porque de fato o que o Artyom mais faz no livro é andar. A ação é tão diluída que é quase que inexistente por boa parte dos capítulos. Embora o protagonista carregue uma arma consigo quase sempre, os momentos que ele de fato dispara uma são bem pontuais. O mesmo se aplica todos os confrontos que ele tem no jogo, 95% – chutando baixo – não ocorre no original.

Uma das fases de Metro 2033 onde você precisa proteger uma estação de um ataque de monstros
Os tão comuns nosalis nunca dão as caras no livro

Essa é uma das diferenças mais fundamentais que eu vejo entre a versão dele no original e na adaptação, pois o jogo nos leva a crer que o Artyom é um soldado altamente experiente e capacitado. Contudo no livro ele está bem longe disso. Por vezes ele precisa ser salvo ora por pessoas mais competentes, ora por mera ação do acaso. Por isso que pra mim é curioso eles terem optado por uma vertente de ação – não do ponto de vista mercadológico, aí faz todo sentido – porque significaria fazer mudanças fundamentais na organização da história. E é exatamente o que fizeram!

Embora ambas as versões mantém a narrativa em primeira pessoa, o jogo remove a “voz” do Artyom. Salvo as breves narrações que ele faz ao início de cada capítulo, Artyom não fala mais mais nada durante a gameplay além de grunhidos. As suas ações que desempenham esse papel. Isso o torna um personagem bem menos interessante do que no livro, não vou negar, onde temos a chance de mergulhar a fundo na psique do protagonista. Mas isso foi uma alteração necessária já que o jogo não dá a mesma ênfase nos temas que o Dmitri Glukhovski discute no seu livro, a não ser aqueles dois principais que eu destaquei e que falaremos mais um pouco ao fim desse tópico.

Essa adaptação opta por focar nos eventos que levam o Artyom pelo Metro. Dá-se mais importância a missão, do que a jornada de descobrimento do mundo que o personagem passa. Assim, o jogo se permite a adicionar, aumentar e contrariar algumas coisas que estão no livro a fim de por mais ação na trama.

Khan falando com Artyom sobre sua visão que a guerra nuclear não apenas destruiu o mundo físico, mas também o espiritual
Alguns dos grandes diálogos do livro ainda aparecem no jogo, como esse do Khan

Por exemplo, sabe toda aquela sequência com o Bourbon em que eles vão pra superfície, enfrentam watchers, demons e um grupo de bandidos? Nada disso acontece no livro, nem minimamente. Primeiro porque no original os humanos não podem ir lá para fora, ao menos não de dia. Por passarem décadas no subsolo, a luz solar iria machucar seus olhos a ponto de cegá-los. Os dois únicos momentos que Artyom vai para superfície, de noite, são na sequência da biblioteca e quando ele sobre na Torre Ostankino. A facção de bandidos é mencionada no livro em algumas passagens, porém Artyom nunca chega a enfrentá-los. As armas, os monstros, tudo isso é inventado para esse universo pois ele precisa funcionar nas regras de um jogo de ação.

Existem outras particularidades também na forma que o jogo tenta recriar a atmosfera do livro que, além de melancólica, é absurdamente claustrofóbica e tensa. No universo de Metro 2033 existem muitos medos originados por fatores físicos e psicológicos. Existe a ameaça real da radiação, dos mutantes e das guerras entre facções. Porém também existe aquele medo visceral e irracional que nasce de ficar olhando um túnel escuro sem saber o que te espreita das sombras.

O jogo não pode deixar os mapas tão escuros assim, afinal você tem que ser capaz de ver no que está atirando, além de deixar muitos mapas bem abertos. Mas ele consegue trazer a tensão do livro através dos sons. Volta e meia você ouve algum grunhido e som estranho de forma que você fica o tempo todo tenso a espera de um ataque. Às vezes aparece um monstro, às vezes não, e assim você nunca se sente plenamente seguro.

Os "bibliotecários" são uma das poucas coisas que aparecem tanto no livro de Metro 2033 quanto no jogo
Todo mundo é gângster até o “bibliotecário” te encarar

E assim, ainda que o foco do jogo de Metro 2033 esteja muito mais na missão que o Artyom precisa realizar, o world-building do original foi muito bem transmitido para cá. Principalmente com os diálogos que você pode ficar escutando nas estações que servem para dar um respiro antes da próxima sequência de ação começar. Isso até refere-se em certo grau as passagens do livro discutindo história, política, existencialismo, teologia, etc; que temos nos livros. O Metro 2033 Redux escancara esse elemento ainda mais permitindo que você encontre diários que eu não sei confirmar se contém trechos tirados diretamente do livro, mas são bem parecidos.

Então, tem muito do original aqui, porém também há muitas novidades que fortalecem o jogo como uma história própria. E para finalizar que gostaria de falar do final. Portanto, saibam que agora entraremos no terreno de spoilers. Se não jogou e quer manter as surpresas, talvez seja melhor pular os dois próximos parágrafos que vou deixar entre os separadores.


A adaptações possui seu jeito único de discutir os dois temas principais que destaquei no tópico anterior através dos seus dois finais. No jogo existe um sistema de pontuação que rola no por trás da gameplay que, dependendo das ações tomadas pelo jogador, te dá a chance de liberar um final alternativo. No final padrão, que segue o livro, Artyom ajuda a disparar os misseis no esconderijo dos Dark Ones, exterminando toda a raça deles. Já no alternativo, Artyom entende a real intenção das criaturas a tempo e derruba a mira laser poupando os Dark Ones.

Citação de H. G. Wells que aparece no final alternativo de Metro 2033
Final correto e dane-se o que cânon diz

No primeiro final, o jogo assume a mesma visão fatalista da humanidade, fadada a repetir aquele o mesmo ciclo de destruição até que sua própria raça seja exterminada. Porém, com o final alternativo, temos a chance de destacar o lado mais idealista dessa história, quebrando o ciclo e mostrando que a humanidade tem sempre a capacidade de evoluir e se adaptar a esse universo se aprender a conviver melhor com aqueles com quem divide o mundo.


Metro 2033, o jogo, é bem mais acessível ao grande público pela forma que escolheu adaptar o livro. E agora considero uma excelente adaptação porque não apenas tomou as decisões necessárias para fazer uma tradução de uma mídia para outra, mas como também teve a coragem de mudar e criar em cima do original, não se prendendo muito a essa noção de fidelidade que limita tanto a visão de artistas.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Antes de ler Metro 2033 eu lembro de ver em algum lugar uma pessoa dizendo que são obras que se complementam. Hoje que conheço ambas posso dizer: não!

Eu não acho que o jogo não vem adicionar qualquer coisa que o livro precisava, da mesma forma que o livro não supre nenhuma necessidade que o jogo deixou de oferecer. Ao meu ver ambas são duas visões distintas de uma história no mesmo universo e não acho que você precisa consumir uma para completar a outra. Acho porém que vocês, se possível, devem dar uma chance ao livro caso apenas conheçam o jogo – que aqui no Brasil acredito que seja o mais comum – ou dar uma chance ao jogo caso tenha lido o livro.

Original e adaptação são ambas fantásticas, cada versão uma com uma visão particular da história. Não precisa ficar se preocupando em quem vez algo melhor ou pior que a outra, apenas aprecie como é bom ter novas direções numa obra estabelecida.


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