Scott Pilgrim é uma obra bem curiosa de se observar no contexto da cultura pop na forma que contamos histórias em mais de um tipo de mídia. A graphic novel, criada por Bryan Lee O’Malley em 2004, angariou uma boa parcela de fãs e, mesmo não sendo uma febre mundial, recebeu algumas adaptações ao longo de uma década e meia. Três no total. Não é um número tão grande assim, mas o que importa aqui não é a quantidade. O que chama atenção no caso de Scott Pilgrim é como cada adaptação se encontra numa mídia diferente e por isso a franquia é um dos melhores exemplos de narrativa transmídia que temos na atualidade.
As duas primeiras adaptações são contemporâneas. Em julho de 2010 chegou aos cinemas Scott Pilgrim Contra o Mundo, um filme de Edgar Wright, que projetou a obra para um público fora da bolha de HQs. Um mês depois veio Scott Pilgrim vs. the World: The Game, um beat’em up feito pela Ubisoft. Assim como o filme, o jogo foi responsável por levar o original para mais pessoas. A última adaptação veio agora, na reta final de 2023, com Scott Pilgrim: A Série, uma produção da Netflix que era a tão sonhada adaptação em animação que muitos fãs desejavam. Pelas minhas contas agora só está faltando um musical, né?
A minha relação com Scott Pilgrim começou com o filme que assisti bem depois do seu lançamento. Anos depois, acredito que na faculdade, que fui ler as graphic novels. Após isso eu fui voltar para esse universo com a série que maratonei dois meses atrás. Por fim, eu joguei o beat’em up há pouco tempo graças a um amigo que me deu de presente de Natal. Com isso eu “zerei” todas as versões existentes de Scott Pilgrim até o momento, restando então a pergunta:
QUAL É A MELHOR ADAPTAÇÃO DE SCOTT PILGRIM?
Olha, é uma questão complicada de se responder por que tem muitos fatores a se levar em conta. Mesmo assim eu refleti bastante e acho que cheguei a uma resposta que julgo ser a mais correta. Então, sem mais delongas, compartilhá-la-ei com vocês:
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NÃO IMPORTA!
Em outras circunstâncias eu pediria desculpas pelo clickbait do título. Entretanto nesse caso eu tenho um bom motivo para fazê-lo porque quero atingir exatamente as pessoas que fariam essa pergunta para o Google ou Reddit. Tudo porque eu democraticamente discordo da visão que uma galera tem sobre adaptações.
Para evitar confusões: eu não tenho nada contra as pessoas terem suas versões favoritas de uma determinada propriedade intelectual. Isso é uma parte natural da nossa relação com as mídias que consumimos. Por outro lado eu não gosto de rankings e tier lists. Bom, para ser mais exato não odeio o conceito em si. Meu problema com essas listas são as discussões que elas acabam fomentando. As pessoas deixam de debater as individualidades e nuances de cada obra e acabam apenas discutindo quem deveria estar mais para cima e quem deveria estar mais para baixo.
Algo similar também acontece em discussões sobre adaptações, onde vejo pessoas mais interessadas em decidir qual é a lendária “versão definitiva” do que analisar os méritos de cada uma. Admito que não sei se isso acontece muito dentro da fanbase de Scott Pilgrim porque eu nunca gostei tanto assim dele para querer participar dos grupos. Eu só estou usando de exemplo porque calhou de ser uma franquia que vi tudo que tinha para ver.
Quando surge uma nova adaptação de alguma obra, a primeira coisa que costumo ver os fãs fazerem é compará-la ao original. Não no sentido de analisar os temas que cada versão aborda, como utilizam a linguagem da sua mídia para contar suas histórias, como trabalham seus personagens e que ideias cada uma traz. O mais comum de acontecer é só uma ânsia em determinar se ela é uma adaptação boa ou uma adaptação ruim. Aí que eu tenho meu segundo problema no assunto, porque as pessoas deixam de enxergar a adaptação com uma nova obra e a tratam apenas como uma transição de linguagem/formato. Por isso existe essa bizarra idolatria pela ideia de “adaptação fiel” como se fidelidade fosse algum sinônimo de qualidade. Afinal…
ADAPTAR É CRIAR
A consequência desse pensamento é todo uma nova série de discussões cansativas e rasas sobre como algo está errado porque “no original não é assim”. A série de Scott Pilgrim, por exemplo, foi vítima disso já que seguiu por uma linha completamente diferente da graphic novel. Muita gente gostou da sua abordagem e devo reconhecer isso, mas volta e meia você se deparava com alguém irritado pela total quebra de expectativa. Aí em vez de debater sobre quais questões a adaptação trabalhava com seus personagens, perdia-se tempo discutindo se era bom ou não ela não ser a tal da “adaptação fiel” que os trailers levavam a crer que seria.
Portanto me sinto impelido a dizer uma coisa: “adaptação fiel” é nada mais que uma ilusão. Nenhuma, e repito, nenhuma adaptação pode – e mesmo que pudesse não deveria – ser fiel ao original. Ela pode se aproximar em maior ou menor grau, contudo ela sempre será algo diferente. Ela é feita por pessoas diferentes, em períodos diferentes, em épocas e em linguagens diferentes com base em leituras próprias do material original, gerando novos significados sobre o mesmo. Não a remota possibilidade de sair algo igual. Nem mesmo o autor conseguiria reproduzir seu trabalho original novamente.
Se você pedir para o Bryan Lee refazer a sua graphic novel, pode ter certeza que vai sair algo bem diferente do que ele fez da primeira vez. Pois o Bryan já não é mais o mesmo quadrinista que ele era quando escreveu o primeiro volume de Scott Pilgrim. Depois de duas décadas o ele encontrou novas referências, adquiriu novos valores, passou por novas experiências, desenvolveu novas perspectivas. Se sentar para fazer um novo Scott Pilgrim não será mais a mesma. Aliás, é exatamente o que aconteceu, pois vamos lembrar que a série também foi escrita pelo Bryan Lee com coautoria do BenDavid Grabinski.
Quando estamos falando de mídias, adaptar não tem o sentido de apenas ajustar. Adaptar é também criar algo novo, sempre é. Mas por um minuto vamos imaginar que sim, que dá para ter essa “adaptação fiel”. Imaginemos que é possível contar a mesma história numa mídia diferente do jeitinho que ela foi contada no original. Nesse caso eu pergunto: qual é o ponto então? Se você vai ter a MESMA história, do MESMO jeito, qual a razão dela existir? Basta ver o original de novo!
Por isso que eu busco separar toda adaptação do seu original. Não significa ignorar de onde parte a inspiração, mas sim entender que são trabalhos diferentes que devem ser analisados como obras diferentes. Isso independe de quão mais ou menos similar ambos são, pois toda e qualquer mudança já altera a história original e produz novas leituras.
O filme do Edgar Wright, por exemplo, muitos interpretam que é uma obra largamente fiel ao original, apenas cortando algumas partes para fazer a história caber em 1h e 52m de duração. Entretanto, tudo que fica de fora do filme muda drasticamente a sua percepção do Scott Pilgrim e do seu arco de personagem. Omitir o problema com bebida do Scott que é apontado por vários dos seus amigos torna a história diferente. Não se aprofundar nos relacionamentos passados do protagonista torna a história diferente. Mudar todo o contexto do encontro com o Nega-Scott deixa a história diferente. Fechar o filme com ele ganhando o Poder do Auto Respeito em vez do Poder da Compreensão deixa a história MUITO diferente. E não teria como ser igual, pois o filme é a leitura que o Edgar Wright faz da graphic novel. É a visão dele daquele universo, daqueles personagens, daquela trama.
No jogo acontece a mesma coisa. Como beat’em up não é um gênero que permite muito enfoque narrativo, essa adaptação decide abandonar por completo os arcos de personagem e vira uma aventura bem linear de derrotar a Liga dos Ex-namorados do Mal de Ramona. Tanto que se você terminar o modo história usando o Scott, no final ele permanece o mesmo garoto imaturo que não tem consideração pelos sentimentos alheios, namorando Kim, Knives e Envy ao mesmo tempo.
Porém podemos usar isso para interpretar o jogo como uma versão em que o Scott “não aprende a lição”. E caso você termine o modo história com outros personagens, vai chegar a novos desfechos. Se você zera com Kim ela termina a história com Knives, por outro lado se você zera com a Knives ela acaba casando com o Scott. O que temos aqui são várias histórias totalmente diferentes do original. Com exceção do final da Ramona que é mais parecido com o da graphic novel e por isso é considerado o final canônico. E vocês sabem o que eu penso sobre cânon.
E a série, ora, eu preciso realmente falar da série de novo? Na sua própria concepção ela foi pensada para ser completamente diferente da graphic novel. Ela reaproveita os personagens e o contexto geral da história base, mas se propõe a colocar a Ramona Flowers no centro do palco em vez do Scott Pilgrim. A mudança de perspectiva nos faz enxergar a personagem com outros olhos e assim entendê-la melhor, já que na graphic novel a nossa leitura e orientada pelo ponto de vista do Scott.
CONCLUINDO
É exatamente por ver todas essas adaptações como obras diferentes que eu não acho justo determinar qual delas é a melhor, pois cada uma tem propostas que divergem muito entre si. Não nos impede de ter nossas preferências, obviamente. Em relação ao tratamento dos personagens eu gosto muito mais do que o original e a série fazem. Por outro lado, eu prefiro a expressividade e linguagem do Edgar Wright no seu filme do que do Bryan Lee na sua graphic novel. Eu gosto mais do design dos personagens no jogo do que o da série animada. E por aí vai!
Só não acho que isso é o bastante para definir que algo é melhor ou pior do que outro, apenas dá para dizer que são diferentes. Para mim essa vontade de ranquear essas mídias é apenas forma muito superficial de analisá-las, como se elas precisassem competir entre si para dizer qual delas é mais digna da atenção do público. O mais interessante para mim é enxergar os méritos próprios de cada uma dessas versões da história de Scott Pilgrim e refletir nos seus temas e implicações. Quem é e quem não é o melhor não faz a menor diferença para a minha leitura!
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