Quando falamos sobre o gênero de aventura, acredito que tem dois nomes que não podemos deixar de mencionar. O primeiro é a Sierra Entertainment, ou Sierra On-Line pros mais velhos íntimos. A Sierra foi uma das grandes pioneiras com seu Mystery House em 1980 e produziu várias das principais franquias de aventura gráfica. Depois dela vieram outros importantes nomes, mas o segundo que acho mais válido mencionar é a LucasArts. Ela se tornou uma das grandes referências de jogos de aventura point-and-click da segunda metade dos anos 80 até os exatos anos 2000. Se na Sierra temos figuras históricas como Ken & Roberta Williams e quando o assunto é a LucasArts nós temos o Ron Gilbert.
Ron ingressou na LucasArts em 1983 quando ela ainda era chamada de Lucasfilm Games. No início da sua carreira, trabalhou em ports dos primeiros jogos do estúdio. Foi após alguns anos lá dentro que ele deu sua principal contribuição para o ramo de jogos de avenutra: SCUMM. De 1987 até 1997 essa foi A engine da LucasArts para o desenvolvimento dos seus títulos point–and–click. Somente quando o estúdio decidiu migrar para jogos 3D que a SCUMM teve que ser abandonada. O Ron Gilbert, por sua vez, ainda a utilizaria em vários dos seus projetos futuros.
O papel dele na empresa não parou por aí, pois em 1990 o Ron criou um dos maiores jogos de aventura de todos os tempos, The Secret of Monkey Island, que despontaria em outra das principais franquias desse gênero. Um tempo depois de dirigir a sequência, Monkey Island 2: LeChuck’s Revenge, o Ron Gilbert deixou a LucasArts. Sua próxima empreitada seria um estúdio próprio que fundou com a produtora e colega de trabalho, Shelley Day, a Humongous Entertainment.
Dali para frente a carreira do Ron virou uma montanha-russa de emoções. Ele e sua sócia deixaram a Humongous Entertainment em 2001, que fechou as portas em 2005, e o segundo estúdio que eles fundaram também fechou anos depois quando a Shelley foi condenada por fraude. O Ron foi pulando de estúdio em estúdio se envolvendo em alguns projetos e em 2014 ele anunciou Thimbleweed Park.
Esse foi um jogo independente que ele escreveu, programou e produziu ao lado se um velho colega de trabalho do início da sua carreira, Gary Winnick, que o ajudou a criar Maniac Mansion em 1987. O anúncio do jogo se deu em 2014 junto com uma campanha de financiamento coletivo promovida no Kickstarter. Thimbleweed Park ficou alguns anos em produção até ser lançado enfim em 2017. O jogo recebeu boas críticas, ganhou alguns prêmios e, o mais importante, irritou muitos fãs do Ron com o seu desfecho.
O RETORNO AS ORIGENS
Thimbleweed Park conta a história dos agentes do FBI Angela Ray e Alberto Reyes investigando um assassinato na pequena cidade homônima de 81 habitantes. Bom, agora 80 habitantes… Além de Arquivo X, vide a dinâmica dos dois agentes, o jogo também toma inspiração outras séries televisivas de investigação e mistério como Twin Peaks. Enquanto tentam resolver o caso, os agentes encontram com outros personagens centrais da trama como o palhaço amaldiçoado Ransome e a jovem desenvolvedora de jogos Dolores Edmund. Dolores é sobrinha do recém-falecido magnata Chuck Edmund e seu pai, Franklin, desapareceu antes dos eventos que dão início Thimbleweed Park. Enquanto Franklin se torna um personagem jogável – como um fantasma – a partir da metade do jogo, Chuck serve mais como uma figura antagonista para a história.
Na “atmosfera” do jogo, existe uma forte nostalgia e isso vem desde a sua concepção. Numa publicação em seu blog pessoal que agora só dá para acessar através do Wayback Machine, o Ron disse que a ideia surgiu de uma conversa que ele teve com o Winnick sobre Maniac Mansion. Pensando na diversão que tiveram naquela produção, ambos decidiram que seria legal tentar fazer um novo jogo de aventura que seguisse seus passos. Já naquele período eles começaram a trabalhar no universo, personagens e puzzles de Thimbleweed Park e o desenvolvimento real iniciou no ano seguinte.
Portanto não é uma mera coincidência que tanto a jogabilidade quanto a interface do jogo decidiram resgatar o estilo daqueles clássicos feitos na SCUMM. O jogador interage com os objetos e com os NPCs através de comandos verbais como: falar, pegar, puxar, dar, usar, etc. Outro aspecto que deriva diretamente de Maniac Mansion – além do design dos personagens cabeçudos – é a possibilidade de alternar entre os protagonistas, essencial para resolução dos puzzles. Por exemplo, um dos primeiros desafios é conseguir um item numa sala que uma NPC não deixa você pegar. Então você usa o rádio da polícia com um dos agentes para fazer com que a personagem deixe a sala. Depois, você alterna para o segundo agente e pega o item antes que ela volte. O resto do puzzle vocês que lutem para resolver!
Mas as homenagens que Thimbleweed Park presta aos jogos de aventura não se resume a jogabilidade. Os diálogos são recheados de referências a títulos clássicos, inclusive os ainda mais antigos baseados em texto. A personagem da Dolores é referência mais descarada. Ela decide abandonar o seu futuro como herdeira da fábrica de travesseiros do seu tio para começar uma carreira como desenvolvedora de jogos de aventuras. E como se isso já não fosse nada sutil, o nome da empresa para qual ela vai trabalhar é MMucasFlem Games.
Até mesmo o ano em que a história se passa, 1987, é mais uma alusão ao primeiro jogo do Ron e do Winnick. Num dado momento eles até aparecem no jogo. São tantas referências que a partir de um ponto elas vão saturando e ficam na iminência da vergonha-alheia. Se eu não me engano, hoje tem uma opção para você desativar essas menções. Mas eu acho que é perdoável porque Thimbleweed Park é um evidente projeto de paixão. Dá para notar toda a admiração que tanto o Ron Gilbert quanto o Gary Winnick carregam pelo gênero. Não apenas porque é nele que estabeleceram uma carreira, mas como também se tornou parte integral da vida pessoal deles.
Julgo que esse é um sentimento que os fã de longa data também compartilham com os desenvolvedores. Thimbleweed Park traz a sensação de estar jogando um clássico que se perdeu no tempo e foi redescoberto recentemente. E talvez seja pelo jogo prestar tanta homenagem ao passado, com uma nostalgia tão pujante no público, que muitos ficaram zangados com o final.
ATENÇÃO
Spoilers do final do jogo a seguir
O FINAL APARENTEMENTE CONTROVERSO DE THIMBLEWEED PARK
Vocês vão me desculpar, mas não tenho outro jeito de falar desse jogo sem entrar em detalhes cruciais da história, em especial o desfecho. Então se vocês estavam procurando uma review no formato mais padrão, deem uma olhada nos seus sites de preferência e depois voltem aqui. Mas se não se importam em saber como essa história caba, vamos nessa!
Ao passo que avançamos em Thimbleweed Park, mais estranho o jogo e os puzzles se tornam. Quanto mais perto de uma resposta você pensa que está, mais mistérios são criados. Você começa com uma “simples” trama de assassinato e logo se vê em meio a uma conspiração. Agora você precisa descobrir a verdade sobre a morte de Chuck Edmund que talvez foi premeditada. Ray e Reyes indicam que tem motivações escusas para estar em Thimbleweed Park investigando aquele caso. Também ficamos sabendo de um misterioso incêndio que aconteceu na fábrica anos antes. E por fim você tem até que procurar o assassino de Franklin, que reaparece no jogo como um fantasma. Aquele primeiro assassinato que deu o pontapé inicial para história perde toda sua relevância.
Ao final do jogo todos os quatros personagens principais, Ray, Reyes, Ransome e Dolores, decidem ir para as ruínas da antiga fábrica, cada um com um objetivo diferente em mente. E quando você acha que o jogo está prestes a fazer algum sentido é aí que as revelações deixam a trama mais absurda. Gravem bem essa palavra. Primeiro a gente descobre que a fábrica continua operando, porém não fazendo travesseiros e sim robôs. Segundo, aprendemos que Chuck está “vivo” pois ele transferiu sua consciência para o computador central da fábrica. E terceiro, Chuck mesmo nos conta que por causa do tempo em que ele passou estudando inteligência artificial ele percebeu que todos em Thimbleweed Park não são nada além do que personagens numa simulação. Ou seja, Chuck fica consciente que ele está preso num jogo de aventura.
Com essa informação, ele convence Dolores que precisam apagar o jogo por completo, caso contrário os desenvolvedores vão continuar reiniciando o universo eternamente. Dessa forma nenhum dos habitantes daquele mundo terá liberdade. Ele entrega para sua sobrinha um item que a ajuda a chegar ao wireframe do jogo, onde ela poderá desativar o computador central e assim todos os arquivos e dados de Thimbleweed Park serão apagados. Uma vez que Dolores desativa o computador, os créditos finais sobem. Tempo depois você vê mensagens indicando que o jogo está se deletando. O jogo fica uns segundos numa tela preta até que surge a tela de um Commodore 64, recupera todos os dados e inicia uma nova simulação do jogo. Conclusão, foi tudo inútil!
Acho que assim dá para imaginar porque esse final irritou bastante gente, pois a guinada metalinguística pareceu para muitos como uma saída fácil para história. Seria o equivalente de meter um “foi tudo um sonho” num filme. Sem contar como isso fecha apressadamente os arcos de todos os personagens com itens que lhes são convenientemente entregues no último capítulo. Pessoalmente eu achei um final fraco que calhou de um real impacto por um motivo bem específico: os personagens JÁ sabiam que estavam num jogo de aventura desde o começo!
Mencionei como Thimbleweed Park é recheado é referências a outros títulos do gênero e isso não se limita apenas no campo da alusão. O jogo é recheado de piadinhas de quebra da quarta parede desde o momento que você dá play. A agente Ray é uma das que mais evidencia a consciência que aquilo tudo é um jogo. Ela faz comentários sobre como uma cutscene está se alongando por demais ou então que nenhum personagem usará umas caixas naquele jogo. A piada mais recorrente de Thimbleweed Park são os protagonistas reconhecendo que o xerife, o legista e o recepcionista do hotel são a mesma pessoa, algo que a população sempre nega. Em dado momento alguém acaba mencionando que isso provavelmente foi para cortar gastos com design e dublagem.
Nem mesmo dá para argumentar que enquanto os outros personagens tem consciência de existirem num jogo, Dolores está alheia dessa informação até recebê-la do seu tio. Isso porque em dado momento do jogo você recebe um controle remoto que você pode usar a qualquer momento quando estiver fora da mansão dos Edmund. Porém ao tentar usar com Dolores ela recomenda que você salve seu jogo antes, porque esse item aciona uma explosão na mansão dando um game over abrupto.
Contudo esse sou eu fazendo uma leitura muito técnica do roteiro do jogo, mas filosoficamente ele também não agradou alguns dos seus jogadores. Isso porque a ideia que a história e ações dos personagens não teve qualquer importância e significado, mergulha o jogo num desfecho niilista. Inclusive eu esbarrei com um vídeo muito bom de um youtuber chamado Henry Kathman que critica Thimbleweed Park nesse aspecto.
Recomendo darem uma olhada porque não só acho o argumento do Heny bem embasado como ele também traz alguns pontos sobre o teatro do absurdo que me ajudaram bastante na minha leitura do desfecho do jogo.
Mas agora eu preciso ser transparente. Eu rejeito essa visão sobre Thimbleweed Park e talvez seja por questões pessoais. Eu acho que niilismo não serve pra nada além de fazer filme de terror. Então o fato de eu ter gostado da gameplay desse jogo isso me faz não querer aceitar uma leitura niilista dele. Ao mesmo tempo, eu tenho algumas razões – talvez não tão bem fundamentadas como o Henry – para me fazer crer que o jogo está fazendo o oposto de defender uma perspectiva niilista da vida e na verdade está nos incentivando a criar nossos significados a respeito da sua natureza.
ENCONTRANDO SIGNIFICADO NO FINAL DE THIMBLEWEED PARK
Caso não tenham assistido o vídeo do Henry, eu vou tentar resumir mais ou menos os pontos dele. Ele começa estabelecendo uma relação entre as narrativas de jogos de aventura com a narrativa do supracitado teatro do absurdo. Este foi um movimento artístico que se originou lá por volta dos anos 50 que por sua tem raízes na corrente filosófica do absurdismo. Ele encara a existência humana como impossível de se justificar racionalmente uma vez que o universo carece de qualquer sentido prévio e a vida e as coisas são ausentes de propósito. Portanto, histórias dentro do teatro do absurdo não possuem narrativas tradicionais que contam com arcos de personagens e contextos que podem ser explicados pela lógica. O apelo vem da luta desses personagens em encontrar algum propósito e significado ante o absurdo da sua existência.
Por também considerar que o universo não possui nenhum significado inerente, o absurdismo é por vezes equiparado ao niilismo. Contudo existe uma diferença fundamental entre essas duas filosofias que o Henry comenta em seu vídeo. O niilismo “prega” a aceitação da falta de sentido na nossa existência, enquanto algumas vertentes absurdistas dizem que devemos buscar um sentido subjetivo para a nossa vida. Essa seria uma forma de se rebelar contra o absurdo do universo. E assim que o Henry argumenta que o principal problema do final de Thimbleweed Park é que quando Dolores aceita a proposta do seu tio de deletar a sua existência ela faz o jogo cair num desfecho niilista que contradiz a lógica ou melhor, ilógica absurdista que até então ela estava se propondo a ilustrar.
A minha discordância vem que eu não acho que o jogo se deixou levar pelo niilismo na sua sequência final. O principal fator que me leva a crer nisso é como os outros protagonistas reagem ao plano de desativar o computador. Em vez deles apenas aceitaram a falta de sentido na sua existência, cada um decide buscar aquilo que mais importa para eles, independente se aquilo vá ter algum efeito no seu universo, a fim de dar o seu próprio significado subjetivo para suas existências.
Reyes usa a confissão de Chuck para inocentar o seu falecido pai que havia sido incriminado pelo incêndio na fábrica. Ransome busca se desculpar com uma das NPCs para que ela reative o seu flashback e assim ele tenha chance de fazer um último e bom show para se redimir das suas escolhas na vida. E Franklin usa um cristal que permite que ele possa falar com os humanos para poder se despedir da filha e se desculpar por não tê-la apoiado mais na sua carreira.
Eu pergunto, se o jogo quisesse mesmo ter uma conclusão niilista porque ele se preocuparia em dar um fechamento para os arcos desses personagens? Alguém pode argumentar que isso é apenas para reforçar a ideia que nada importa que os personagens busquem amarrar suas história no final já jogo vai reiniciar outra vez e tudo será perdido. É o mito de Sísifo que está condenado a empurrar uma pedra para o alto de um morro por toda a eternidade. Mas como o próprio Henry fala no seu vídeo, quando cita o filósofo Albert Camus, uma referência no absurdismo, que no seu ensaio, que coincidentemente leva o nome de O Mito de Sísifo, onde ele argumenta em prol da rebelião como resposta a a falta de sentido na existência. E na sua defesa desse argumento ele nos sugere que “precisamos imaginar Sísifo feliz”. Ao que me faz voltar para Dolores.
O arco de Dolores não tem uma resolução porque essencialmente isso conclui na parte em que ela tem uma última conversa com o pai. Então tudo que resta para ela fazer é destruir o jogo para teoricamente libertar os personagens do ciclo infinito dentro daquela simulação. Contudo, eu tenho para mim que a Dolores sabia exatamente que o Thimbleweed Park não seria deletado. Como eu mencionei anteriormente, a personagem estava bem ciente de estar dentro de um jogo e inclusive sabia os exatos momentos em que era possível haver um game over ou chegar no ponto sem retorno. Na minha visão, Dolores esteve esse tempo todo interpretando conscientemente seu papel como personagem num jogo de aventura pois esse é o significado que ela tira para sua existência.
Quando Chuck conta para ela a “verdade” sobre estarem numa simulação, rola um efeito sonoro tão cômico e uma reação tão exagerada que não tem como você interpretar o momento como uma farsa. Não tem como ela se surpreender com a revelação de uma informação que ela sempre teve, ela apenas finge surpresa para entreter uma pessoa: você, o jogador.
Sendo assim, ela decidiu não estragar a experiência e deixar que nós jogássemos novamente porque ela sabe o valor que isso também para quem gosta dos jogos desse nicho. Por vezes ver o final da história não é o nosso maior interesse e sim os puzzles, o universo e os personagens. Vamos nos fazer uma pergunta: por que a gente joga um jogo de aventura pela segunda vez? Salvos casos que existam múltiplos finais, a história não vai mudar e a gente já sabe a solução os puzzles. Mesmo assim a gente joga. Porque já não é nem mais para saber o que acontece no final e sim passar um tempinho naquele mundo que tanto nos entretém e nos deixa criar novos significados a cada nova gameplay.
No contexto de Thimbleweed Park, nós, não os personagens, somos Sísifo. O jogo reinicia não como uma forma de invalidar tudo que aconteceu na história e tirar seu sentido, ele reinicia para nos dar outra possibilidade de se divertir com aqueles personagens, naquele universo e tentar extrair algum significado daquilo tudo. A Dolores concorda em “deletar” o jogo porque no fundo ela sabe que isso não vai acontecer e que no final os jogadores poderão começar um novo jogo. Afinal ela é uma desenvolvedora de jogos de aventura, o que dá propósito a sua existência é criar histórias, mundos e personagens que possam entreter os jogadores. Porém o significado que eles vão tirar dessa experiência não compete a ela definir, você que tem que buscá-lo!
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