No cinema, o terror é facilmente o meu gênero favorito de longe. Por outro lado, nos vídeo games a coisa muda de figura. Eu não chego a explorá-lo tanto quanto eu gostaria (e poderia). Ainda me esforço para fazer um texto aqui e outro ali sobre jogos de terror no blog, inclusive tem até uma lista solta por aí. Mas eu ainda acho que isso é pouco e tenho certeza que dava para eu investir mais no gênero. Então calhou que meses atrás eu lembrei que comprei um survival horror indie no Natal e ainda não havia testado-o. Corrigi esse erro naquele mesmo dia. Mal sabia eu que o jogo se tornaria um dos meus favoritos desse ano: Tormented Souls (que obviamente não é desse ano).

Esse foi um projeto de um pequeno estúdio chileno de nome Dual Effect. Eu não sei como e quando ele entrou na minha lista de desejos. Tudo que eu sabia de Tormented Souls quando o instalei é que aquilo era um survival horror e a falta dessa memória é muito boa. A vida hiperconectada deixa tão pouco espaço para surpresas que é uma maravilha quando a gente tem a oportunidade de cair em algo tão bom às cegas. Pelo meu entusiasmo já dá para imaginar o quanto gostei do jogo. Fui cativado de imediato ao ver que ele vinha com a proposta de resgatar a experiência de clássicos do survival horror, como os primeiros jogos das franquias de Resident Evil e Silent Hill. Em menos de uma hora de gameplay eu já tinha a certeza que Tormented Souls foi um jogo feito sob medida para mim.

Tormented Souls é um jogo que busca resgatar a jogabilidade e atmosfera de clássicos do survival horror como os primeiros títulos de Resident Evil e Silent Hill
Perfeito!

Não sei se já mencionei aqui, mas a minha relação com jogos de terror levou um tempo para se construir. Embora hoje eu consuma muito (filmes de) terror, antigamente a história era outra. Fui uma criança bastante medrosa a ponto que nem o Chucky eu conseguia assistir. Já nos vídeos games, o primeiro contato aconteceu com Resident Evil: Nemesis no PlayStation. Ou melhor, Biohazard 3: Last Escape, já que a cópia que eu tinha era japonesa. Foi um contato muitíssimo breve porque, somando a minha covardia com a incapacidade de ler kanji, eu tive que largar o CD antes mesmo do Nemesis dar as caras por lá.

Muitos anos no futuro, quando eu e o terror já tínhamos um relacionamento mais sólido, eu retornei a franquia de Resident Evil para explorá-la de fato. Dentre todos os jogos pelos quais passei, é a fase do 1 até o Code Veronica que eu gosto mais. Não é à toa que o meu favorito na franquia é o remake do primeiro, hoje um pouco acima do Resident Evil 4 original. Existe uma soma de fatores para isso, porém a jogabilidade é um dos principais. Adoro o uso de câmera fixa, os puzzles, a mira automática é um dos poucos gêneros em que eu gosto do gerenciamento de inventário. Para resumir, eu gosto muito dessa “vibe” dos survival horrors clássicos, logo esse é o maior fator que me fez gostar de Tormented Souls.

Na história você controla a protagonista Caroline Walker, uma jovem mulher que um dia recebe a foto de duas garotinhas gêmeas com uma mensagem dizendo que ela as abandonou. Sem qualquer memória daquelas meninas, Caroline vai até o endereço indicado na carta, o Hospital Wildberger, para encontrar respostas. Chegando lá, ela é atacada e acorda numa banheira presa a um estranho aparelho. Caroline descobre que alguém removeu seu olho direito e criaturas assustadoras se encontram em cada um dos cantos daquele lugar.

Eu não vou dar mais detalhes da histórias, vocês que joguem!

Mas também existe uma outra peculiaridade em Tormented Souls que me ajuda a gostar mais ainda dele. Considero que o jogo consegue reunir o melhor de dois mundos: a jogabilidade de Resident Evil com a atmosfera de Silent Hill. Não dá para ignorar o sentimento de estar explorando uma espécie de Mansão Spencer, cheia de enigmas excêntricos e monstros te esperando ao virar um corredor. Contudo o jogo não segue pela mesma linha de ficção científica de filme B e puxa elementos mais surrealistas que te fazem pensar nos pesadelos que você vive na cidade de Silent Hill. Tem até um momento que Caroline consegue atravessar espelhos para entrar num mundo corrompido que grita Otherworld.

Alguns detalhes da jogabilidade de Tormented Souls como o combate, puzzles e saves limitados
Os devs sabiam muito bem o que estavam fazendo com aquela imagem inicial

Acho que aqui dei informação o suficiente para quem tem contato com jogos daquele período pode imaginar a gameplay de Tormented Souls: câmera fixa com infames controles de tanque, mira automática, munição escassa e muitos puzzles pelo mapa. Tem até o retorno dos itens limitados para poder salvar. A única “concessão” – entre aspas porque dá para argumentar que nos três primeiros Silent Hill também era assim – que os desenvolvedores deixaram o inventário ser infinito.

É um jogo para quem gosta, e principalmente para quem tem saudades, desse período dos survival horrors. Ele não tenta ser uma subversão, uma releitura, uma reinvenção, nada do tipo. Também não vou usar o termo “carta de amor” porque isso virou um clichê. Resumidamente, Tormented Souls foi uma excelente e bem executada forma de resgatar uma gameplay que apagaram do mainstream.


A crítica poderia parar por ali já que eu não tenho muito o que falar sobre o jogo em si. Porém eu não consigo evitar de brigar com o “gamer médio metafórico” que existe dentro da minha cabeça. O fato de Tormented Souls se manter tão fiel às suas raízes é o que faz dele, ao mesmo tempo, um jogo interessante e um problema no cenário atual.

Enquanto eu jogava, me vinha à cabeça alguns dos possíveis criticismos bestas e implicâncias que Tormented Souls poderia sofrer. Obviamente que isso é muito fruto da má vontade que eu tenho com a comunidade gamer e eu sei que é errado se precipitar dessa forma. Mas quando eu me lembro que vivemos numa época que estão pedindo remake do remake do primeiro Resident Evil, esse desgosto me domina.

Portanto eu conseguia visualizar alguém encrencando com, por exemplo, a câmera fixa do jogo e os controles de tanque. No segundo caso é até um pouco compreensível já que esse tipo de movimentação de personagem era criticada lá nos “longínquos” anos 90 e 2000.

A protagonista Caroline encontra uma prancheta que mostra alguns dos controles do jogo
Um dia as pessoas aprenderão a te valorizar, controles de tanque!

Também tenho certeza que alguém encrencou com os gráficos, ainda mais com o fato que os personagens não mexem a boca durante os diálogos e tem animações mais duras. Coisa que é facilmente explicada por se tratar de um estúdio indie que não se pode dar o luxo de contratar dezenas de designers 3D e gastar muito tempo e dinheiro para fazer texturas de altíssima resolução. Por fim eu imaginei o tal “gamer médio metafórico” usando aquela palavrinha que faz meu sangue ferver:

D A T A D O

Eu entendo que sou muito tendencioso para entrar nesse assunto já que tenho o costume de consumir obras antigas, sejam elas no cinema, jogos e, em menor grau, animês & mangás. Então quando essa palavra cai em discussões, eu sempre reviro os olhos. No âmbito dos vídeo games, eu vejo isso se manifestar mais porque, como já comentei em outro texto, o gamer é muito fixado naquilo que ele percebe como moderno. E notem que eu uso o verbo perceber aqui porque essa é uma “teoria” que eu formulei há algum tempo e jogar Tormented Souls a trouxe de volta na minha cabeça.

Nesses últimos dois ou três anos, mais ou menos, eu fiquei mais convencido que boa parte das coisas que são classificadas com o infame título datado – no sentido de ultrapassado/antiquado – não são necessariamente datadas. Algumas evidentemente são, não irei negar que algumas mecânicas não se sustentam no teste do tempo. Porém não acho que isso seja a maioria, muito pelo contrário. Boa parte delas apenas são vistas dessa forma porque foram abandonadas pelo mainstream da indústria. Os grandes estúdios seguem certas tendências nas produções dos seus títulos AAA a fim de alcançar o maior público possível. Comercialmente falando, não existe um problema per se nisso. Contudo os danos no discursos sobre jogos são outros quinhentos.

Por conta dessa mentalidade, muitas mecânicas passam a ser consideradas como uma espécie de “evolução natural” das outras. O exemplo que citei no texto acima para mim foi emblemático, pois naquele período eu vi gente tratando como se os RPGs de ação fossem os sucessores dos RPGs baseados em turno. Tais pessoas ignoravam que ambas as gameplays já coexistiam desde os anos 80. O que aconteceu é que títulos com uma jogabilidade voltada mais para a ação passaram a dominar uma fatia cada vez maior do mercado. Assim eles viraram a norma que dita o imaginário popular. Mesmo considerando que uma das maiores franquias da história ainda utiliza esse sistema de combate na sua linha principal, RPGs baseados em turno tem essa percepção como “coisa do passado” que os RPGs de ação não tem.

Único chefão de Tormented Souls
A conclusão se aproxima

Aí voltamos para Tormented Souls. A sua jogabilidade é um espelho do Resident Evil da década de 90 e início dos anos 2000. Contudo, a partir do Resident Evil 4, a ideia de câmera fixa foi posta de lado. A série adotou a perspectiva de tiro em terceira pessoa com aquela mira sobre o ombro que ditou a jogabilidade das sequências. Mas mais do que isso, Resident Evil 4 influenciou outras séries como Gears of Wars, Dead Space e The Last of Us. Se você balançar uma árvore irão cair pelo menos cinco gameplays nesse estilo, sendo uma delas um remake de um dos outros jogos. Resident Evil está fazendo isso com toda sua fase clássica e eu não me surpreenderia – apenas sentiria desgosto – que quando surgir o fatídico remake do remake do primeiro jogo será o mesmo.

Novamente eu reforço que do ponto de vista comercial não existe problema. Eu aceito isso. Minha preocupação é com essa falsa percepção que a jogabilidade clássica ficou para trás por estar datada e não apenas porque os grandes estúdios não acham viável explorá-la. Porque ultrapassado de fato ela não está e Tormented Souls é um bom exemplo. O jogo tem muita atmosfera, puzzles sólidos e não existe dificuldade em se adaptar aos controles e a câmera fixa. É uma proposta de gameplay não só muito válida como perfeitamente funcional.

Ainda existem tropeços aqui e ali. A animação é um pouco truncada em alguns momentos. Não existem outros modos de dificuldades que reduzem o valor de replay. Poderia haver mais variedade de armas e monstros, principalmente chefões já que só tem um no jogo todo. Mas muito desses pontos dá para relevar quando você se lembra que é uma produção de um estúdio indie. Tormented Souls está aí mostrando que a jogabilidade clássica funciona muito bem, independente daquilo que se tem pelo “jeito certo” de fazer um survival horror atual.


Backlogger precisa do seu apoio para crescer. Então, por favor, compartilhe ou deixe um comentário que isso ajuda imensamente o blog. Você também pode me seguir em outras redes como TwitterTumblr. Para mais críticas clique aqui.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *