O título desse texto deveria ser “Eu torço para que o Avatar da Netflix flope”, entretanto eu já fiz isso com outra série. Só que existe uma diferença fundamental que me fez mudar de ideia. O meu problema com o live action de One Piece vem da minha rusga histórica com o menosprezo que desenhos, e animação em geral, ainda recebem no ocidente. Com Avatar: A Lenda de Aang e sua próxima adaptação tem até um pouco dessa rusga, mas o cerne do meu desafeto vai para além disso. Nesse caso vai de encontro com uma tendência que venho observando em algumas produções contemporâneas que me incomoda.
Caso você não acompanhe as redes sociais (te invejo), ou não está por dentro das notícias da próxima “Netflix Original” que será a supracitada série live action de Avatar, as coisas não andam muito positivas. Algumas informações saíram nos últimos dias revelando detalhes sobre a abordagem que os produtores tomara com a adaptação. Como podem imaginar, algumas falas deixaram os fãs um tanto desgostosos. Eu sou um deles e vocês sabem o que acontece quando eu fico desgostoso com algo.
Eu já estava com os pés atrás com essa série há muito tempo. Primeiro por conta desse meu desprezo quase instantâneo com a necessidade de se criar contrapartes live action de grandes obras de animação. Às vezes eu erro com essa minha precipitação, outras vezes não. Acho que esse é um caso das outras vezes. Segundo porque, três anos atrás, os criadores do original deixaram o projeto pelas boas e velhas “diferenças criativas”. Isso para mim já serve de red flag suficiente para desconfiar do que estão fazendo numa adaptação, porém surgiu um terceiro item. Para reforçar mais ainda as minhas preocupações, os produtores abriram a boca. Agora que a “diversão” começa!
Antes de continuar, gostaria de dizer que não tenho nada contra mudanças. Eu tenho até texto defendendo a necessidade delas existirem. Contudo as mudanças dessa adaptação em particular não parecem vir de um interesse genuíno de produzir algo novo que se sustente além da obra original. O que os produtores deram a entender é que essas mudanças visam “consertar” algumas coisas do desenho que hoje seriam consideradas “problemáticas”. Chegamos na verdadeira rusga que tenho com o live action.
Se me permitem citar mais outro texto, ano passado eu escrevi ‘Skullgirls e porque é tão difícil discutir coisas na internet‘. Ali eu comento o caso desse jogo de luta onde sua atual equipe de desenvolvimento decidiu remover “conteúdo problemático” numa das últimas atualizações. Assim como no live action de Avatar, fãs não gostaram nadinha dessa atitude. Ignorando as reações, o que eu vejo é que esses dois casos servem de exemplo de higienização da cultura pop que vem se repetindo muito. Ela surge não por uma preocupação legítima com causas sociais e sim como uma forma de empresa continuar ganhando dinheiro com um progressismo cinicamente performático.
É foda falar isso porque fico preocupado de me confundirem com esses maluquinhos que gritam lacração ao ver uma minoria em posição de destaque em qualquer obra.
Isso acaba casando também com parte do público interneteiro que não consegue lidar com personagens que apresentem qualquer falha de caráter. Nem mesmo quando esses defeitos vem em benefício da narrativa daquela obra. Se nós, o público, estamos cientes desse fenômeno podem ter certeza que elas, as empresas, também já perceberam. Mas deixa eu parar de enrolar e ir para os exemplos específicos do live action de Avatar que retratam isso. Vou focar em três onde, ao contrário do que os produtores subestimam, deu para notar que os fãs do desenho foram capazes de enxergar as nuances e por isso que as mudanças os desagradaram:
Sokka, um dos personagens principais de A Lenda de Aang, terá sua misoginia severamente diminuída no live action. Eu acho engraçado falar isso. Misoginia severamente diminuída. Faz até parecer que no desenho ele era um desses incels ou redpills que vemos hoje em dia na internet, né? Porém a realidade está muito longe disso. A misoginia que vemos no personagem do Sokka não vai muito além daquela que a gente vê em todo adolescente, caso você já tenha visto algum.
As falas e os comportamentos sexistas que vez ou outra ele expressa são muito mais uma consequência da sua criação numa sociedade patriarcal. Sem contar a sua própria imaturidade, intrínseca de qualquer adolescente. E mais do que isso, não é como se o desenho retratasse esse sexismo juvenil do Sokka só pela graça. Não! O personagem tem todo um arco que o faz avaliar suas atitudes em relação as mulheres. Ao fim da série o Sokka se mostra muito mais, para usar um termo de internet, descontruído. Ele aprende a respeitar, admirar e compreender as mulheres, superando as noções que o seu meio de origem o levou a crer.
Depois vem o Aang. Aparentemente o live action quer ser uma série mais dramática e para tal o Avatar não vai mais sair nas mesmas aventuras que vemos pelo desenho. Ele quase que de imediato irá por na cabeça que precisa ir para a Tribo da Água do Norte enfrentar a Nação do Fogo. Daria para relevar essa escolha afinal a série não pode se dar o mesmo luxo de fazer vários episódios igual a animação por causa do orçamento. O problema é que os produtores parecem não entender o porquê o personagem sai nessas aventuras e veem elas como meras brincadeiras.
Aang é uma criança na qual colocaram um fardo enorme de salvar o mundo. Então é óbvio que a primeira reação dele é fugir dessa responsabilidade. O personagem estava lá cheio de sonhos, curtindo a sua infância e de repente fica sabendo que não apenas é o Avatar e mas que também terá que enfrentar a Nação do Fogo para reestabelecer a paz no mundo. Queriam o quê? Que ele falasse “show de boleta, monjaida! Bora sentar o pau neles”? As aventuras do Aang são uma parte integral do seu crescimento como personagem. É através delas que pouco a pouco ele aprende a ser o Avatar, conseguindo a coragem, habilidade e força para poder fazer jus a posição.
Por fim tem a Katara que os produtores resolveram tirar algumas das suas “questões de gêneros”. Talvez seja só eu traduzindo errado ou então o produtor se expressando mal, mas pelo contexto dá para inferir o que ele quis dizer. Dentro do universo criado para a história de A Lenda de Aaag, a Katara deveria usar a sua dobra de água apenas para ser uma curandeira pois na sua tribo o papel de guerreiros são reservados para os homens. Além disso, ela é representada como tendo uma postura muito maternal, inclusive o próprio Sokka confessa numa passagem que enxerga a irmã como se fosse a mãe deles. Novamente… ISSO FAZ PARTE DO ARCO DA PERSONAGEM!
Não só dela, mas como também da Toph que entra na segunda temporada. Ambas as personagens confrontam os papéis de gênero que as sociedades nas quais foram criadas estabeleceram para elas. Não é o desenho sendo sexista com as personagens, é o desenho retratando o sexismo que ocorre naquele universo que reflete questões que nós vemos na nossa realidade. Pois como é que vamos discutir essas questões numa obra se esses problemas não estiverem inseridos na sua trama? Porra, parece que os produtores não assistiram um episódio sequer do original e tomaram como referência uma dúzia de artigos buzzfeedianos que falavam dos “elementos problemáticos” de A Lenda de Aang.
Mas o que deixa essa história mais (tragi)cômica em face de tudo que estão cortando nesse live action de Avatar é o que resolveram incluir. Pois os produtores também disseram que o genocídio da Tribo do Ar será mostrado na série. Ou seja, “elementos problemáticos” que são usados para se discutir questões dentro da série e desenvolver seus personagens não podem aparecer. Mas pelo visto violência gráfica feita não em benefício da narrativa e sim pelo valor de choque está valendo. É como diz aquele popular meme de Community – #SixSeasonsAndAMovie – que nunca perde a graça e relevância: eu posso perdoar genocídio, mas eu não vou perdoar sexismo!
Mas honestamente foi até bom que os produtores soltaram todas essas falas. Elas me deram mais certeza que o live action de Avatar não valerá nem meu tempo e nem minha atenção. Sendo assim posso focar todas as minhas expectativas na próxima temporada de Arcane.
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