Tribo urbana é um termo cunhado pelo sociólogo francês Michel Maffesoli lá em 1985 que ganhou força com o lançamento do seu livro “O Tempo das Tribos: O declínio do individualismo nas sociedades de massa”. Livro este que eu não li e por enquanto estou apenas citando o verbete da Wikipédia na cara de pau mesmo. Ah sim, vai levar um tempo até eu explicar o que arqueologia de jogos significa, então apertem os cintos que a viagem vai ser longa. Esse é um termo que todo mundo já ouviu em algum momento da vida, definindo grupos formados por indivíduos que dividem interesses similares. Tais interesses podem ser: hábitos, gosto musical, maneira de se vestir, ideologias, etc.
Esses pontos em comum os levam a desenvolver uma nova cultura dentro do ambiente urbano e, desde o surgimento da internet, do virtual. Não sou nenhum sociólogo, mas pelos poderes investidos pelo efeito Dunning–Kruger acredito que podemos considerar os gamers como mais um um exemplo dessas tribos urbanas. É um grupo que tem suas próprias expressões, estética e um partilha um sentimento de coletividade. O quanto isso é positivo para a humanidade são outros quinhentos.
Uma característica da “tribo gamer” em comum com as “tradicionais” é que elas acabam se dividindo em tribos menores. Por exemplo, temos gamers que organizam comunidades em torno de um único gênero como é o caso da Fighting Game Community. Também há várias outras comunidades formadas numa única franquia, Five Nights at Freddy’s, ou então um único jogo, Stardew Valley. Mas o tipo mais conhecido dessas subdivisões com certeza são os grupos centrados nos consoles. Aí temos os sonystas, caixistas, nintendistas e PC Gamers (que negarei até o fim dos meus dias que faço parte deles). Apesar de cada uma dessas pequenas tribos terem características distintas, em um ponto elas convergem: todas são insuportáveis!
No meio dessa galera toda que eu citei existe uma outra comunidade que são os retro gamers, um grupo de pessoas que se dedicam a jogar e colecionar jogos e consoles antigos. REALMENTE antigos. Mas é complicado porque não existe um parâmetro tão claro assim para definir quando é que um jogo passa a ser considerado antigo, a não ser em casos extremos como Enduro. Portanto, para simplificar a minha vida, eu decidi criar um parâmetro próprio para definir uma linha divisória entre jogos antigos e novos. Algo simples como três gerações de consoles abaixo da vigente. Pior que hoje em dia já não gosto dessa divisão que eu mesmo criei.
Atualmente com os lançamentos do PlayStation 5 e do Xbox Series X/S nós entramos na nona geração. Logo, segundo a minha métrica, os jogos considerados antigos seriam da sexta geração, marcada pelo Dreamcast, PlayStation 2, GameCube e Xbox, para trás. Aqui eu adiciono um asterisco pois acho que a linha divisória ainda é um tanto nebulosa em relação a sexta geração. Porque a nona geração ainda está começando e também porque, e isso é uma pura impressão minha, os jogos desses consoles permanecem largamente populares com os jogadores mais novos. O PlayStation 2, por exemplo, até pouco tempo atrás ainda era o 3º console mais popular no Brasil.
Mas ok, não é necessária tanta precisão para definir o que é um jogo antigo para os propósitos desse texto. A verdadeira intenção é falar narcisisticamente sobre a minha relações com esses jogos pelos últimos 3 anos. No final do ano passado eu postei no Medium a minha Jogospectiva 2021 que é nada mais do que uma lista de todos os jogos que zerei no ano passado. Dá pra tirar algumas conclusões desse texto, sendo a primeira que eu tenho MUITO tempo livre. A segunda é que eu vario bastante em relação a época que cada um desses jogos foram lançados.
Se formos fazer uma análise com base na data de lançamento, podemos ver neste ~belíssimo~ gráfico de pizza 3D gerado no Excel que mais de 1/3 dos jogos que eu zerei em 2021 foram da década de 90. São dez pontos percentuais acima da quantidade de jogos que eu zerei que eram da década passada. Se somarmos com os 6 jogos que foram lançados nos anos 80, quase que metade dos jogos que eu zerei no ano passado tem entre 22 até 35 anos de existência.
Agora vamos adicionar ao bolo também os jogos dos anos 2000 que faz o valor subir para 67% do total de jogos. Ou seja, considerando aquela minha métria, a maior parte dos jogos que zerei em 2021 podem ser considerados antigos. Pegando esse fato, e considerando também os tipos de jogos que eu frequentemente recomendava lá no meu perfil do Twitter acho que daria para dizer que eu me incluo no grupo dos retro gamers.
Só que não!
Se você for me perguntar, eu diria que é mais fácil me classificar como um PC gamer (embora continuarei negando esse título) já que tem cerca de 15 anos que eu não possuo um console. Isso é por causa questões de preferência pessoal e também pela minha condição financeira. Porém, mais do que isso, eu não me considero como parte dessa comunidade de retro gaming pois eu simplesmente não tenho o menor interesse pela experiência física de jogos antigos. O que eu quero dizer com isso? Que tenho zero interesses em colecionar cartuchos os CDs antigos e jogá-los nos seus respectivos consoles.
Desde meus 8 anos mais ou menos quando meu primo abriu meus olhos para emuladores com uma ROM em espanhol de Pokémon Gold que eu não vejo muito a necessidade de jogar um título no console para qual ele foi feito. Sei que emulação não é perfeita, principalmente para os consoles mais recentes, porém ela cria uma experiência próxima o suficiente do ideal para eu aproveitar aquilo que realmente me interessa que é o jogo em si independente do hardware em que ele roda.
Mas novamente ok! Isso não é necessariamente um critério eliminatório para eu não me considerar um retro gamer. Até porque existe uma parcela de retro gamers que se dedica exclusivamente a emulação de jogos. O interesse no retro gaming vai muito mais além da tecnologia da época. Entre outros fatores, também pode estar atrelado aos sentimentos de nostalgia que esses jogos evocam nessas pessoas. Então meu interesse por esses jogos antigos poderia muito bem vir das memórias que eu tenho deles durante a minha infância e adolescência, né? Bom, aí vamos para outro ~belíssimo~ gráfico de pizza 3D gerado no Excel:
O gráfico abrange todos os jogos zerados que foram lançados até 2015. A fatia azul representa a porcentagem desses jogos que eu NUNCA havia jogado antes. Muitos deles eu conhecia por nome como Mother, Rocket Knight Adventures e Half-Life, porém era apenas isso. Nunca havia chegado nem meio metro próximo de qualquer cópia física ou digital da maioria desses jogos. Então, por que jogos antigos?
Citando a minha jornada em jogar os três primeiros jogos da série Dragon Quest, eu comento sobre o processo que me levou a essa decisão. Basicamente Dragon Quest era outra dessas séries de jogos que eu conhecia por nome, como Baldur’s Gate e Persona, mas que eu nunca tive o menor interesse em jogar. No final de 2021 eu decidi testar pelo menos um. Dando uma olhada por cima dos jogos da linha principal dessa franquia eu decidi começar pelo Dragon Quest V. Especificamente na versão de Nintendo DS que vi alguns membros em diferentes fóruns considerando essa a melhor versão do jogo. Eu cheguei a jogá-lo por uns minutos. Creio que mais ou menos dez. Até que então eu desliguei o emulador e baixei o primeiro Dragon Quest lançado pra NES em 1986!
Para a maioria das pessoas eu imagino que isso parecere uma decisão muito aleatória. Mas para mim, que infelizmente tenho que conviver comigo mesmo, faz todo sentido de acordo com como a minha mente funciona. E isso tem tudo a ver com a relação que eu tenho com jogos antigos hoje. Em 2019 quando eu tentava jogar Deus Ex: Mankind Divided eu percebi que meu PC enfrentaria cada vez mais problemas para tentar rodar jogos mais recentes dado os requisitos mínimos que eles demandavam. Dada a minha situação de desemprego na época eu também não poderia me dar o luxo de usar o dinheiro que eu tinha guardado para comprar uma máquina mais potente. Até mesmo porque o dinheiro não daria nem para um PC da Positivo.
Portanto eu decidi que até conseguir um trabalho bem remunerado (que eu ainda não tenho) e um computador melhor (que eu tenho em partes) eu iria focar as energias nas minhas “dívidas da infância”. Ou seja, jogos que há muitos anos eu cheguei a jogar, porém não tinha conseguido zerar por motivos de falta de foco ou habilidade. Nesse período joguei coisas como Terranigma, Croc: Legend of the Gobbos, Claw e Phantasy Star II. Esse último caso é o mais importante pois ele que causou uma mudança na forma que eu tinha decido consumir jogos.
Da série de Phantasy Star eu tinha jogado o II, III e IV na infância. Porém o quarto foi o único que me prendeu suficiente para jogar até o fim. A minha ideia inicial era jogar apenas o II, mas vendo que o que eu mais teria era tempo decidi então zerar a série toda. Inclusive o IV, que fazia tempo que eu não jogava, com intenção de ver como ela foi mudando de um jogo para o outro.
Foi no final dessa jornada que algo estalou na minha cabeça e eu me peguei tendo um interesse bem mais profundo nesses jogos antigos do que apenas essa ideia de pagar dívidas da infância. E daí surgiu esse conceito de arqueologia de jogos. Demorou, mas chegou.
Arqueologia de jogos não é nenhum termo que eu carrego com qualquer seriedade. É apenas uma piada ultrainterna que eu falo para mim mesmo para definir essa nova relação com os jogos antigos que, como eu falei, não deriva de nenhuma nostalgia ou necessariamente gosto pelo retro gaming. Hoje o que eu busco é tentar entender a história dos jogos e como cada franquia nasceu e foi evoluindo ao longo do tempo, como esses jogos ajudaram a moldar a indústria e as revoluções que causaram nos seus respectivos gêneros. Mas como isso é uma explicação longa demais, eu falo apenas arqueologia de jogos.
Pegando Half-Life como exemplo. FPS não é um gênero que eu sou particularmente aficionado. Salvo alguns títulos pontuais que eu cheguei a jogar, cenários de ficção científica também não estão alto na minha lista de interesses. Eu sempre gostei mais de fantasia aos moldes de O Senhor dos Anéis. Eu nem sou muito ligado aos jogos da Valve assim (mas Left 4 Dead tá aqui no coração).
Porém eu sempre ouvia como esse jogo foi um marco para o seu gênero e já que eu estava a fim de conhecer um pouco mais da história dos FPS (e também porque tinha uma promoção boa na Steam, isso é sempre importante) eu resolvi jogá-lo. E por ter gostado tanto da experiência que ele me proporcionou em pouco tempo eu já estava jogando a sua sequência para ver o quanto ela evoluía do original fosse em mecânicas, narrativa e apresentação visual.
Foi nessa curiosidade da minha arqueologia de jogos que me fez sair de Dragon Quest V do Nintendo DS de 2007 para a trilogia do NES de 1986 até 1988. Foi tudo para eu tentar entender melhor como essa franquia ajudou a criar e popularizar o RPG nos consoles. E agora tendo zerado o Dragon Quest IV e ido para o Dragon Quest V (só que de SNES) eu estou trilhando o mesmo caminho que fiz com Phantasy Star e observando como cada jogo da série vai evoluindo a franquia.
E eu tenho mergulhado cada vez mais fundo nessa ideia de arqueologia de jogos.
Sword of Vermilion, um RPG que eu nem curti tanto assim de jogar, foi um dos títulos que eu achei mais fascinante pelo fato de, no início dos anos 90, fazerem um título relativamente ambicioso que misturava elementos de dungeon crawler, RPG de ação e até um proto- Linear Motion Battle System, aquele sistema de batalha com vista lateral de Tales of Phantasia.
Sweet Home, outro RPG antigo, esse jogado em 2020, que eu testei para compreender a sua influência para a criação do jogo que simplesmente definiu o survival horror como um gênero, Resident Evil. Que aliás, eu só fui jogar o primeiro nesse ano uma vez que também queria visualizar os primeiros passos da franquia e como ela estabeleceu suas próprias tropes.
Em 2019 eu rejoguei Castlevania: Symphony of the Night e dei sequência com Super Metroid. Por quê? Justamente para entender como cada um desses jogos contribuiu para estabelecer o metroidvania como gênero.
E Parasite Eve, por que eu decidi jogá-lo? Porque eu estava interessado em vez o surgimento dessa pegada mais cinematográfica que foi sendo aplicada aos RPGs ali pelos anos 2000. E o Super Mario Land que eu joguei não tem nem algumas semanas foi por quê? Eu queria ver como é que a Nintendo conseguiu adaptar a jogabilidade de um dos seus carros-chefes para uma tecnologia que estava surgindo ainda.
E Pepsiman? Bom, isso foi por pura nostalgia mesmo e o resultado não foi nem um pouco positivo! Arqueologia de jogos nem sempre me leva por um lugar proveitoso.
Mas é isso. Esse é todo o motivo de eu gostar tanto de jogar um jogo de tantos anos atrás, não necessariamente porque eu tenho uma paixão por jogos dessas épocas ou porque eu estou tentando reviver a minha infância através do consumo de vídeojogos. É apenas uma genuína curiosidade em compreender como o meu passatempo favorito de longa data foi se aprimorando ao longo dos anos e me vejo interessado em mergulhar cada vez mais profundamente para entender seus diferentes aspectos em diferentes consoles em diferentes épocas.
É capaz até de eu jogar Mega Man Soccer só pra tentar entender o que diabos a Capcom estava cheirando naquele dia!