
Os leitores mais assíduos desse blog – todos vocês dois – sabem que estou no meio de um processo de consumo de cinema nacional desenfreado. O que começou com uma mera curiosidade a filmografia de um diretor brasileiro independente de terror, acabou crescendo para uma maratona de mais 15 filmes. Maratona essa que já duplicou novamente. Agora estou num ponto em que todo dia eu assisto um ou dois filmes brasileiros. Sempre que acho que vai acabar eu descubro outra coisa interessante para assistir.
Nessa leva de 30 e tantos filmes, ainda contando, eu vi muita coisa. Vi drama, comédia, terror, animação, musical, documentário, thriller, suspense (tem diferença), mistério e sei lá que gênero dá para encaixar A Cidade dos Piratas. Vi filme desse ano, vi filme da década passada, vi filme dos anos 60, vi até mesmo filme da época do cinema mudo. É bem fascinante conhecer a pluralidade do nosso cinema nacional para além daquilo que vez ou outra passa na Sessão da Tarde. Sendo assim, há de se imaginar que essa experiência tem me deixado muito satisfeito, não é mesmo? Pelo contrário, a cada nova pedrada cinematográfica que assisto eu fico mais puto!!!
Se antes, quando eu conhecia somente dúzia e pouca de ótimos filmes brasileiros, eu já me irritava com quem falava besteira sobre o cinema nacional, agora que eu conheço… mais de uma dúzia e pouca isso foi só piorar. Porque quanto mais o meu repertório cresce, mais perceptível fica o quanto o discurso predominante sobre o nosso cinema é feito porque gente que não tem A MENOR IDEIA do que está falando. Obviamente que isso vem de um lugar de muita ignorância, só que é de um tipo mais especial de ignorância.
Sabe aquele papo de que existem várias formas de inteligência? Pois bem, eu acredito que o mesmo vale para a ignorância. Para mim, existem duas principais: a ignorância honesta e a ignorância cínica. A primeira, que também gosto de chamar de ignorância sincera, é aquela na qual todos nós estamos submetidos naturalmente. É o simples não saber. Se você chegar para o ignorante honesto e perguntar o que ele acha do cinema nacional, ele vai te responder que não conhece muitos filmes brasileiros para poder opinar. Se mais pessoas tivessem esse tipo de autoconsciência os dias seriam mais fáceis.
Infelizmente não vivemos num mundo ideal e quando o assunto é cinema nacional (rima não intencional… essa também não foi) a gente lida em maior grau com o ignorante cínico. Ele desconhece tanto quanto o ignorante honesto a respeito dos filmes brasileiros, ou até mais, porém ele não é capaz de reconhecer a sua limitação. Mais do que isso, ele vai tentar emular um conhecimento que ele não tem com base em estereótipos que ouviu de outras pessoas que também não conhecem o cinema nacional. Assim o ignorante cínico repetirá alguns dos maiores clichês discursivos que estamos cansados de ouvir: como só se faz comédia pastelona padrão Globo Filmes ou que só se fala de ditadura militar, favela e Nordeste.
Para piorar, o ignorante cínico tem a possibilidade de influenciar o ignorante honesto com essas bobagens já que ambos desconhecem de fato os filmes brasileiros. Aí entra a influência do imaginário popular do cinema nacional que hoje é formado pelo que eu chamo de “Big Four”: O Auto da Compadecida, Cidade de Deus, Tropa de Elite e Ainda Estou Aqui. Porém tem um asterisco no último exemplo. Ainda estou aqui é um filme recente e essa conversinha de filmes sobre a ditadura militar é um pouco mais velha.
Acredito que essa ideia no passado recente veio de Marighella, filme de 2019 que gerou umas polêmicas cansativas, e porque boa parte desses ignorantes cínicos são de direita. Não estou sendo leviano e vocês podem conferir por si mesmos da próxima vez que esse tipo de comentário passar pelo seus feeds. Alerta de evidências anedóticas a seguir:

Para essa galerinha do barulho, a classe artística toda é de esquerda então a cultura também é toda dominada pela esquerda. Logo, a conclusão mais óbvia para eles é que todos os filmes são contaminados por esquerdismo e sempre que possível eles irão apontar para Transe. Por isso que fica muito frustrante quando a gente vê esse ignorante cínico falando bobagem, porque é visível o quanto aquilo tudo é só falta repertório, birra por causa de política ou as duas coisas.
Mas o que me irrita mesmo é o quão teoricamente fácil é desmantelar esse discurso. Se eu for me limitar apenas a minha listinha de filmes maratonas, dá para puxar vários exemplos que não encaixam nos estereótipos que essa galera acredita existir. Ganga Bruta, Os Cosmonautas, À Meia Noite Levarei a Sua Alma, Os Saltimbancos Trapalhões, A Marvada Carne, Trabalhar Cansa, Sinfonia da Necrópole, Terra e Luz, O Animal Cordial, Abraço de Mãe, Os Enforcados e Oeste Outra Vez. Só aí tem 12 filmes passando por quase um século de história e nos mais variados gêneros da ficção. De novo eu reforço que o cinema nacional é muito plural, basta você se prestar a conhecê-lo.
Contudo, aí chegamos a outra frustração: encontrar esses filmes não é uma tarefa fácil. As produções brasileiras tem um grande gargalo que é a distribuição. Muitos filmes ficam circulando em festivais e quando conseguem entrar no circuito comercial é com pouquíssimo espaço. A maior fatia desse mercado é oferecida para as produções estrangeiras, ou seja, filmes norte-americanos. Quando os brasileiros entram em cartaz é quase sempre em poucas cidades e saem tão rápido quanto chegam.
Até por meios “não oficiais” a gente não tem a mesma flexibilidade. Títulos como Uma História de Amor e Fúria, Cabra Marcado Para Morrer, Recife Frio e Quando Eu Era Vivo eu só fui capaz de assistir graças aos heróis que não usam capa que os subiram no YouTube. Mas nem sempre isso é possível. Precisei ir numa plataforma russa questionável para conseguir assistir Cabaret Mineiro. Ou então posso citar Mundo Proibido, uma animação que vou ficar na vontade por tempo indeterminado já que a única versão que encontrei para baixar está com uma qualidade de imagem terrível.
Assim o que chega para os ignorantes, sejam eles honestos ou cínicos, são os filmes do meu xará Leandro Hassum que tem pelo menos um todo ano. Youtubers também não ajudam nenhum um pouco, preferindo falar de coisas como Internet: O Filme para perpetuar a má imagem que nosso cinema tem. Isso cria aquele viés da excepcionalidade que comentei no meu outro texto. Muitas pessoas já foram convencidas que o Filme Brasileiro Bom™ é um fenômeno raro.
Entendem agora a minha raiva? Eu tô aqui com uma lista com mais de 70 pedradas cinematográficas (algumas são discutíveis) que eu sei que não vão servir para nada. Mesmo que citemos vários filmes bons, sempre vai ter um ignorante cínico com muito mais alcance feito o Cross do Flow Games e que dirá que cinema brasileiro é uma merda usando como único critério um filme do Danilo Gentili…

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