A história (resumida) dos jogos de terror no RPG Maker

Imagem com cinco jogos de terror no RPG Maker: CORPSE-PARTY, Yume Nikki, Vila do Nevoeiro, Ao Oni e The Hanged Man. Ao fundo tem um rosto de um tradicional Jack Ol' Lantern de Halloween

Japão, 1992. A ASCII lança como parte da sua linha de softwares para criação de jogos o RPG Tsukūru Dante 98, ou Dante98 para os íntimos. A ferramenta permitia que seus usuários criassem RPGs aos moldes de Dragon Quest de maneira simplificada, sem precisar saber uma linha de programação sequer. Isso tornou o desenvolvimento de jogos acessível a um público jovem e apaixonado pela mídia, pavimentando uma nova cultura local para artistas independentes. Logo o Dante98 se tornou uma linha própria, hoje conhecida como RPG Maker, que estabeleceu comunidades ao redor do mundo nos anos 2000.

Contudo nossa história começa de verdade quatro anos depois do lançamento do Dante98 com o jovem universitário Makoto “Kedwin” Kedouin. A ASCII realizava uma série de competições anuais para promover o RPG Maker e em 1996 Kedwin decidiu participar com seu jogo CORPSE-PARTY. Ele ficou em segundo lugar, chamando atenção por se afastar dos RPGs tradicionais e apostar numa jogabilidade que combinava elementos de aventura e terror. CORPSE-PARTY foi então publicado numa revista da época e depois distribuído gratuitamente pela internet. Em seguida, traduções de fãs permitiram que ele alcançasse um público de fora do Japão. Mal sabia Kedwin que com seu humilde projeto iria impulsionar uma longa e duradoura tradição de jogos de terror no RPG Maker.

Sei que é arriscado soltar esse tipo de afirmação. Sempre tem a chance de um nerdão ajeitar os óculos, erguer o dedo indicador e soltar um “ackchyually” com o nome de algum jogo obscuro de 1990 e lá vai bolinha. Contudo, talvez esse seja um dos poucos casos que podemos dar os créditos a um título específico. CORPSE-PARTY é um dos registros mais antigos que temos de título conseguiu “furar a bolha”. Pode ser que existiu algum outro jogo de terror no RPG Maker antes dele em algum fórum japonês esquecido por Deus? Num sei, até onde eu consegui pesquisar CORPSE-PARTY parece ter sido o primeiro. Além disso, foi ele que estabeleceu um modelo de jogabilidade que seria replicado por vários outros jogos no futuro.

Ao começar seu projeto, Kedwin usou como sua principal referência o clássico do Sweet Home, lançado em 1989 para o Nintendinho, que chamamos pela alcunha de “avô do survival horror”. CORPSE-PARTY conta a história de um grupo de estudantes presos numa dimensão alternativa da sua escola que é assombrada pelas almas daqueles que ficaram presos ali. Além desses espíritos, os personagens também precisam escapar do espírito vingativo de uma ex-estudante num vestido vermelho. Salvo uma ocorrência no final em que o grupo tem que enfrentar a antagonista numa batalha de turnos de um RPG tradicional, CORPSE-PARTY foca na resolução de puzzles. Isso inclui a possibilidade de alternar entre os personagens tal como em Sweet Home.

Os jogos de terror no RPG Maker que vieram nas décadas seguintes também buscaram enfatizar os aspectos de aventura e não de combate. Alguns até puxavam elementos de sobrevivência, porém no geral seguiam o modelo de CORPSE-PARTY. Contudo não podemos atribuir o sucesso de qualquer movimento cultural, por maior ou menor que seja, a um único expoente. Portanto vamos dar mais um salto no tempo para dois anos depois da chegada do RPG Maker 2k3. Ali surge o usuário Kikiyama, cuja identidade até hoje segue um mistério. Ele, ela ou eles, quem quer que sejam, posta em 2004 a primeira versão do seu projeto pessoal, Yume Nikki. Sem uma trama clara ou mecânicas sofisticadas, o jogo consistia em explorar mundos dos sonhos com a garota Madotsuki para colocar vários itens.

Yume Nikki atraiu muita atenção com seus visuais que ajudavam a criar uma atmosfera surrealista. Assim ele serviu de inspiração para outros jogos independentes com alguns temas em comum. Um deles é o famosíssimo Undertale do Toby Fox, que inclusive conseguiu entrevistar Kikiyama alguns anos atrás. No RPG Maker não foi diferente e Yume Nikki influenciou outros jogos da própria comunidade, como foi o caso de Omori (2020). Outra influência direta que dá para citar é em LISA: The First (2012), um jogo que é um pouco pela sua sequência mais conhecida, LISA: The Painful (2014). Ele também consiste de uma jogabilidade de exploração simples em que controlamos outra garota explorando um mundo repleto de imagens surrealistas. A diferença é que LISA: The First não é nada sútil ao se mostrar como uma história sobre abuso infantil e rapidamente se transforma num desconcertante terror psicológico.

Ok, mas vamos com calma aí. De CORPSE-PARTY até Yume Nikki temos intervalo de oito anos, então seria errado achar que não tivemos outros jogos de terror entre eles. Um tempinho atrás eu descobri a existência de Shuujin e no Pert-em-Hru (1998) no site Hardcore Gaming 101. Este é um jogo sobre um grupo de arqueologistas tentando escapar de uma pirâmide amaldiçoada pelo espírito do faraó Khufu. Seu autor, o jovem Makoto “Makoto Serise” Yaotani, também criou o projeto para uma competição da ASCII utilizando o Dante98 e cita CORPSE-PARTY como sua principal inspiração. Entretanto, Makoto escolheu manter o aspecto de RPG com combates aleatórios em Shuujin e no Pert-em-Hru. Além disso, ele incorporou a ideia que o protagonista pode aprender comandos que eventualmente o ajudarão a salvar alguns dos personagens de situações de risco.

Outra vez eu reconheço a possibilidade que devem existir outros exemplos além de Shuujin e no Pert-em-Hru e que não precisam se limitar nem ali no Japão. O problema é que infelizmente uma parte da história do RPG Maker já se perdeu. A maioria dos usuários utilizavam aqueles sites de hospedagem. Com o fim dessas plataformas, também se foram vários jogos daquele período. Não apenas jogos, mas também comunidades inteiras já sumiram do mapa. Gigantes como RPG Maker Brasil, Castelo RPG, Reino RPG, Jogos RPG, RPG Menace (que retornou das cinzas recentemente) e Mundo RPG Maker hoje são apenas memórias.

Ok, só para não deixar o tom melancólico, nem tudo se perdeu. Pessoas que frequentaram esses fóruns ainda mantém a chama do RPG Maker vivo no Brasil. A Condado Braveheart é um bom exemplo e tem até uma postagem onde o pessoal vem reunindo jogos de RPG Maker que conseguiram resgatar. De qualquer forma, ainda existem alguns títulos que só existem nas lembranças de alguns usuários. Eu tenho meu exemplo pessoal que é Fear. Foi um dos primeiros jogos gringos que eu tive contato e hoje o único link que encontrei dele está no site Gaming Room, que já citei em outros textos.

O foco de Fear era survival horror, com óbvias alusões a Silent Hill onde você tem um grupo de amigos que vai parar numa cidade com uma névoa misteriosa e são impedidos de sair por forças e criaturas sobrenaturais. Seu autor foi um cara chamado Devin e considerando as referências e o fato de ser um jogo do RPG Maker 2k, dá para supor que Fear é ali da primeira metade dos anos 2000. Infelizmente não dá para saber muito mais do que isso. Nem mesmo nos sites que arquivam jogos antigos de RPG Maker eu encontrei uma menção a Fear. Além do mais, com a recente popularidade de Fear & Hunger (2018) qualquer busca sobre “fear rpg maker” vai resultar nele. Então provavelmente eu sou uma das poucas pessoas que ainda se lembra dele e devem existir dezenas e até centenas de outros exemplos.

Aproveitando essa ponte que fiz com as comunidades brasileiras, não dá para deixar o cenário nacional passar batido. Apesar de que tivemos bem menos jogos de terror no RPG Maker do que no Japão, ainda dá para destacar uns exemplos. Havia uma longa tradição de fangames nos fóruns brasileiros, sobretudo de Dragon Ball e Os Cavaleiros do Zodíaco, então era evidente que em algum momento alguém tentaria fazer o mesmo com a alguma franquia de vídeo game. Então em 2006 o EVILBIEL trouxe pelo RPG Maker XP o Resident Evil RPG (que depois recebeu uma segunda versão chamada Rebirth). É um jogo bem autoexplicativo então eu vou simplesmente passar para o seguinte.

Primeiro capítulo de Vila do Nevoeiro, um survival horror feito no RPG Maker XP

Com a versão XP, a “força”  do RPG Maker se ampliou. Com uma resolução maior, mais flexibilidade no tamanho de sprites e suporte para criação de scripts com Ruby, era a oportunidade ideal para tentar projetos relativamente ambiciosos com a plataforma. Foi então que o Triskal se juntou com alguns de seus amigos para formar a Estação Virtual e desenvolver o jogo Vila do Nevoeiro (2008).

O Triskal utilizou imagens pré-renderizadas para criar a ilusão de um cenário 3D que se aproximava dos survival horrors clássicos. Tal como Fear, a narrativa puxava muito de Silent Hill, com um pai que passa por dimensões infernais em busca do seu filho. Vila do Nevoeiro também abusava de simbolismos nos seus monstros e tinha a sua própria versão da Ordem. A jogabilidade tinha lá seus problemas, sobretudo no combate, mas ainda foi um projeto necessário para motivar a comunidade a testar os seus limites criativos.

Por fim, não dá para falar de terror no RPG Maker sem mencionar o Calunio, um dos poucos nomes a conquistar uma projeção para fora da bolha brasileira.

O primeiro jogo dele que tive contato foi o incompleto Alvorada do Mal, que era um RPG mais tradicional sobre um estudante que percebe coisas estranhas acontecendo na sua escola e no mundo. Mas o que foi estabelecê-lo como o artista que é até hoje foi seu jogo Beautiful Escape: Dungeoneer (2010). Como o próprio se descreve, o Calunio busca em seus jogos fazer com que as pessoas simpatizem com personagens de caráter questionável. No título citado, ele te faz controlar um rapaz que participa de um grupo que sequestra e tortura pessoas nos seus calabouços, produzindo e compartilhando vídeos das suas sessões. É um tipo de arte transgressiva não tão comum no RPG Maker, pelo menos até onde eu sei, e que consegue ter uma complexidade emocional com jogabilidades bem particulares. 

A transição dos anos 2000 para os anos 2010, como podem notar, foi uma época muito boa para o gênero de terror no RPG Maker. Vários clássicos surgiram nesse período, como Re:Kinder (2010), Ib (2012), The Witch’s House (2012) e Headless Prisoner (2013). O modelo de jogabilidade que CORPSE-PARTY e Yume Nikki utilizaram lá trás se tornou quase uma norma para tais jogos. O combate era pouquíssimo enfatizado, isso quando não era completamente descartado, para se priorizar os visuais, a atmosfera e, claro, os puzzles. Algo que nadava contra a onda de survival horrors do eixo mainstream dos vídeo games.

Assim chegamos no que talvez tenha sido o maior fenômeno de jogos de terror no RPG Maker: Ao Oni (2008), do noprops. Este apostou numa dinâmica de Clock Tower, onde o jogador além de se ocupar com puzzles também deveria fugir de criaturas que o perseguem pela mansão. Pode não parecer lá grandes coisas, mas fato é que Ao Oni se tornou um jogo imensamente popular em lives de Let’s Play no Japão. Isso criou um cult following em torno de Ao Oni que gerou dezenas sequências não-oficiais, séries spin-offs e paródias.

Na minha visão isso aconteceu porque o jogo conseguiu estabelecer um template fácil de se replicar através de um antagonista icônico, uma jogabilidade sem floreios e não exigindo uma história que se aprofunda mais do que sua premissa. É quase como se ele tivesse definido um subgênero, uma espécie de escape room do RPG Maker que se mantém até hoje. Em maio deste ano saiu Aooni: The Horror of Blueberry Onsen, dando continuidade ao universo que o noprops nem imaginava que criaria.

Se ainda restava alguma dúvida, a década de 2010 serviu para mostrar que o gênero de terror no RPG Maker estava plenamente consolidado. Tanto que até o seu “primo” herdou essa tradição. Em 2003 surgiu no Japão o Wolf RPG Editor, uma ferramenta alternativa distribuída gratuitamente na internet. Contudo, essa é uma comunidade que consegue ser ainda mais nichada que o RPG Maker, com um público quase que majoritariamente asiático. Felizmente os jogos conseguiram transpor essa bolha graças a traduções de fãs e assim títulos como Misao (2011) e Mad Father (2012), ambos desenvolvidos por Sen, puderam ser aproveitados no Ocidente. 

The Hanged Man, último título da série The Strange Men Anthology no Wolf RPG Editor

Mas talvez a figura mais importante nesse cenário do Wolf RPG Editor é a Uri, uma desenvolvedora independente que está ativa desde 2011. Uri tem ao todo oito jogos no seu portfólio, sendo sete deles jogos de terror. Neles se destacam The Strange Men Anthology que é formada por quatro jogos desenvolvidos entre 2011 e 2017: The Crooked Man, The Sand Man, The Boogie Man e The Hanged Man. Cada jogo tem seu próprio protagonista, embora os personagens apareçam nas sequências como parte do elenco, que precisa enfrentar seus demônios internos em busca de redenção. Uri explora diversas vertentes do terror, do sobrenatural até o thriller psicológico, e segue como um dos nomes mais importantes do cenário independente. 

Acho que já chega, né? Se me deixar eu fico citando joguinho de terror até não poder mais. Se ficaram curiosos, o blog Zero Corpse tem praticamente todos esses títulos que eu citei e muitos outros. Alguns até estão traduzidos! O site não é atualizado há algum tempo, porém da última vez que eu chequei os links estavam funcionando.

Então para finalizar, a história do terror no RPG Maker vem sendo escrita há quase três décadas e ainda se mostra com muito combustível para se manter por anos a fio. É um berço repleto de artistas criativos que consegue se dar o luxo de não seguirem tendências mais populares para se expressar e cativar um público próprio. Este texto foi um mero resumo, um recorte bem específico das minhas experiências pessoais com o gênero nesses anos, mas que torço para que sirva como pontapé para muitos de vocês explorarem esse universo também.


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