Em 2022, eu escrevi ‘A narrativa como uma qualidade diferencial’. Nesse texto eu uso Call of Juarez: Gunslinger e The Friends of Ringo Ishikawa para explicar porque a narrativa é o elemento que mais me interessa nos jogos em geral. Mas o que importa hoje é um terceiro jogo que cito como exemplo no meio do texto, um beat’em up chamado Fight ‘N Rage. Ele pode ser descrito como “uma carta de amor”, expressão que se tornou um clichê quando se fala de jogos indie.
Não é difícil notar o quanto o desenvolvedor de Fight ‘N Rage adora jogos de luta, beat’em ups e filmes de artes marciais. O jogo tem dezenas de referências ao gênero, começando pelo próprio nome que evoca diretamente das mais importantes franquias do gênero: Streets of Rage e Final Fight. Acontece que esse tipo de homenagem é muitíssimo comum quando a gente olha para o cenário indie como um todo.
Por exemplo, tem um estúdio brasileiro já citei bastante aqui no blog, a JoyMasher. Desde 2012, ela lança ótimos jogos numa pegada retrô que sempre referencia alguns clássicos das primeiras gerações de consoles. Não tem um jogo da JoyMasher que você não consegue associar a algum título consagrado. Oniken e Odallus: The Dark Call acenam para Ninja Gaiden e Castlevania, respectivamente, enquanto Blazing Chrome está gritando Contra e Metal Slug.
O último jogo deles, Vengeful Guardian: Moonrider, tem entre suas principais inspirações Mega Man e Shinobi. Dos quatro jogos da JoyMasher esse é o único que eu não sou tão positivo a respeito. Eu reconheço seus méritos, contudo o considero muito acomodado. Me parece que o estúdio já estava bem ciente do público retrô que cativou ao longo de uma década e por isso não houve muito tesão nesse quarto título. É um jogo seguro, sem riscos, sem desafio. Como eu gosto de chamá-lo: bonitinho, mas ordinário.
Ao que nos traz ao texto de hoje!
Algumas semanas atrás eu zerei mais dois jogos indie: Jay and Silent Bob: Mall Brawl e Aggelos. Novamente é fácil apontar quais são as principais referências de cada um desses jogos. Além dos filmes do Kevin Smith, Jay and Silent Bob: Mall Brawl resgata a jogabilidade e a estética beat’em ups do Nintendinho. Aggelos, por sua vez, não esconde nem um pouco sua inspiração na série de jogos de Wonder Boy. Esses dois exemplos, somados aos anteriores, são o que eu comecei a chamar de “jogo homenagem”. Não é um termo com qualquer conotação negativa, é apenas a forma como eu gosto de descrever jogos que são muito bem honestos com o que querem reproduzir, aludir e/ou reverenciar.
Eu gostei bastante de Jay and Silent Bob: Mall Brawl e Aggelos, entretanto não tinha muito o que falar sobre eles além de uma rápida recomendação. Ficaria por isso mesmo se eu, na minha curiosidade, não tivesse ido espiar as reações do público na seção de comentários análises da Steam. Ambos os jogos têm recepções ligeiramente positivas, cada um por motivos diferentes. Aggelos tem sido duramente criticado pelos controles, ainda mais por não ter suporte para os direcionais em controles de Xbox. Algo que eu não teria reparado porque, como toda pessoa decente, eu jogo no teclado. Enquanto isso, Jay and Silent Bob: Mall Brawl é criticado por ser um beat’em up medíocre.
Isso acabou me fazendo pensar. Será que existe um limite para o “jogo homenagem”? Para chegar nessa resposta eu acho que não existe uma alternativa melhor do que contrastar esses dois jogos. Então nada melhor do que reviver a minha categoria de Double Down que faz tempo que não atualizo com um texto novo. Primeiro eu vou falar dos dois separadamente em reviews rápidas e depois eu concluo o raciocínio.
JAY AND SILENT BOB: MALL BRAWL É UM BEAT’EM UP 8-BITS. BOM, É SÓ ISSO MESMO!
Historicamente, sempre tivemos adaptações de propriedades intelectuais famosas nos vídeo games. Com novas gerações chegando, o retrô também se tornou um nicho procurado. Sobretudo no cenário indie. Hoje também temos a união desses dois mundos, com jogos que resgatam gameplays retrô e as combinam com franquias conhecidas. Curiosamente o gênero de beat’em ups se tornou uma incubadora para essas empreitadas. Para citar alguns casos que me lembro assim de cabeça, temos The Phantom e G.I. Joe: Wrath of Cobra em desenvolvimento. Enquanto eu revisava o texto, o meu amigo Savino soltou uma review de um novo jogo do Karate Kid que vai por essa mesma linha.
Jay and Silent Bob: Mall Brawl é outro exemplo dessa intersecção, contudo o que me motivou a comprá-lo foi apenas a pegada retrô que é um dos meus pontos fracos. Os personagens, por outro lado, eu não me poderia me importar menos já que o único contato que tive com eles foi no clipe de Because I Got High do Afroman.
Pois bem, na história temos os protagonistas titulares tentando escapar do shopping depois de arruinar a gravação de um programa da TV local. É um contexto que a princípio não parece dar muito espaço para criatividade, porém o jogo consegue ter cenários diversos sem precisar exagerar. Porém nos inimigos a gente nota mais limitação. Eu volto nisso depois, primeiro vamos falar sobre a gameplay em geral.
Jay and Silent Bob: Mall Brawl é uma reprodução bem fiel do que você imagina ser um beat’em up do Nintendinho. Os gráficos e a música são exatamente aquilo que você esperaria de um jogo 8-bits, enquanto os controles também não tentam ir muito além do que você encontraria no console. Você escolhe um dos dois protagonistas para jogar, mas pode alternar entre eles a qualquer momento durante a fase. Os dois tem o mesmo combo simples de três ataques, sejam socos ou chutes, conseguem agarrar os oponentes, fazer um dash e um ataque aéreo.
As diferenças entre os dois protagonistas são bem poucas. Em essência, o especial. Depois de completar um combo você habilita um golpe especial que é usado automaticamente no final do próximo combo. Para o Jay o especial sai com o combo de chutes, enquanto para o Silent Bob são os socos. Outro detalhe é que se um dos personagens é derrotado, o HP dele vai recuperar lentamente até chegar aos 50%. Quando chega nessa marca, você pode selecioná-lo de novo e assim, se você jogar com cuidado, fica muito difícil você ter que recomeçar a fase ao ser derrotado com o Jay e o Silent Bob.
A estrutura de cada level, tal como o jogo como um todo, segue o padrão linear da maioria dos beat’em ups. Vai para a direita, senta o sarrafo em quem tiver na frente e no final tem um chefão. O jogo não tenta fazer qualquer coisa diferente, com exceção de uma parte em que você precisa desviar de obstáculos com um carrinho de compras fazendo uma alusão à infame fase das motos de Battletoads.
Os inimigos não são lá muito variados e tem até bastante vida. Isso deixa o ritmo um pouco lento, nem as armas que você pode pegar ajudam muito porque quebram geralmente no primeiro inimigo que você derrota com elas. Por sorte as fases, com exceção da última, são curtas para compensar por esse combate mais devagar.
Os chefões, em sua maioria, não têm nada muito especial e não apresentam tantos desafios. O jogo até faz algumas coisas mais criativas em certas fases, como o Fecal Man que você só consegue causar dano usando um desentupidor. O meu favorito é na fase do salão de jogos em que você precisa derrotar o chefão no air hockey. Apesar de que o hitbox do disco é um pouco zoado (ou eu que provavelmente sou muito ruim de timing). Tem até um chefão para fazer alusão a outro jogo, Mega Man, que é uma luta mais chatinha do que criativa, já que você precisa acertá-lo num intervalo curto entre seus ataques.
Bom, não tem muito mais o que falar de Jay and Silent Bob: Mall Brawl. Se você está procurando uma experiência de beat’em up retrô, é o que o jogo entrega. Divertidinho até mesmo para quem só conhece os personagens por causa de um videoclipe falando sobre os reveses de ficar chapadão.
AGGELOS: METROIDVANIA RETRÔ CHEIO DE CARINHO (E AVENTURA)
Quando a primeira tela do jogo abre com uma logo de ‘Wonder Bobi’ não tem muito espaço para ter dúvidas, né? Tal como Jay and Silent Bob: Mall Brawl, Aggelos que é um jogo que busca resgatar uma gameplay antiga, porém não de um gênero e sim de uma franquia, Wonder Boy.
Essa é uma série de jogos bem especial, que começou lá atrás nos arcades em 1986 e indo até 1994 no Mega Drive. Depois de muito tempo vivendo apenas na memória dos seus fãs, Wonder Boy teve um retorno através de alguns remakes de alguns de seus títulos e também Monster Boy and the Cursed Kingdom. É uma franquia curiosa os jogos transitam em vários gêneros de um para o outro: tem plataforma, shoot’em up, ação-aventura, RPG de ação e metroidvania. Esse último a gente nota com bastante força em Wonder Boy in Monster World que eu acredito ser a principal referência para Aggelos.
Desse modo, o sentimento de familiaridade é bem forte já nos primeiros minutos de jogo. Arriscaria até dizer que Aggelos configura como uma espécie de “sucessor espiritual” de Wonder Boy. Só não faço isso porque o estúdio até o momento não mostrou intenção em fazer sequências para Aggelos. Mas, enfim, esse é um jogo que vai por um caminho que eu chamo de “retrô atualizado”. Algo que a JoyMasher faz muito também nos seus projetos (com exceção de Vengeful Guardian: Moonrider que sigo não sendo fã). Não é necessariamente pegar uma jogabilidade mais antiga e modernizá-la, mas sim fazer pequenos ajustes que retém a essência “clássica” sem alienar jogadores mais novos.
Aggelos é um jogo de ação-aventura 2D que também incorpora elementos de RPG e metroidvania. Ao longo da sua progressão você coleta magias e itens que te permitem explorar novas áreas e também revelar segredos ou completar desafios de mapas anteriores. Mas para o jogador não ter que ficar indo e voltando em cada região, os desenvolvedores adicionaram um grato teletransporte que facilita muito essas viagens. O sistema de magia também é bem mais complexo do que o visto em Wonder Boy in Monster World, oferecendo ao jogador mais opções durante o combate.
Os gráficos, em termos de design e animação, são outro fator que podemos dizer que recebem um upgrade. Aggelos parece ficar num espectro entre os gráficos 8 e 16-bits, porém tem um nível de detalhes que superam a maior parte dos jogos daquelas gerações. Só na narrativa que a gente vê que o jogo não atualiza e acho isso um ponto forte.
Numa época em que jogos se enchem de textos que os jogadores vão pular ou esquecer segundos depois de ler – mas mesmo assim vão achar uma história ótima segundo a lógica de volume = qualidade – é um alívio ter uma trama enxuta do herói escolhido enfrentando o grande vilão com a força dos quatro elementos. Há um world-building que se desenvolve através de curtos diálogos, indicando um universo muito maior do que a gente vê nos eventos do jogo, porém Aggelos se mantém simples, direto e eficiente. Para alguns será um defeito, mas as pessoas devem ter seu direito de estarem erradas a uma opinião.
Só senti saudades de um pouco mais de desafio. Não durante os mapas, mas sim nos chefões. As dungeons são ótimas e talvez eu seja um dos poucos que aprecia o espaçamento entre save points para dar mais tensão ao explorá-las. Os chefões já não dão o mesmo trabalho, ainda mais que você pode levar uma poção e uma erva que lhe dão mais chances de sobrevivência. Existe um pico de dificuldade quando a gente se aproxima do final, com monstros que causam quantidades maiores de danos, mas nada que te fará suar se você não sair desembestado pelo mapa.
Então para quem quer reviver a experiência de Wonder Boy, Aggelos é uma boa escolha. Acredito que ele tem tudo que fez a série ser especial para seus fãs, ao mesmo tempo que oferece características próprias para angariar seu próprio público. Uma pena mesmo não ter nem sombra de uma sequência, já que o jogo abre espaço para continuações futuras.
MAS ENTÃO… QUAL É LIMITE DO “JOGO HOMENAGEM”?
Como eu havia dito na introdução, gostei bastante desses dois jogos. Muito mais de Aggelos, contudo isso é mais uma consequência das minhas preferências de gêneros. Ainda assim me senti um pouco deslocado ao ver alguns comentários Jay and Silent Bob: Mall Brawl que por mais de uma vez foi chamado de medíocre. E aqui entra uma questão importante. Embora medíocre queira dizer mediano, não é bem assim que ele é usado na prática. Dependendo da entonação da pessoa, às vezes parece que ele está abaixo de ruim. Então, eu sempre encaro como uma ofensa e sempre que utilizo é com essa intenção.
Mas voltando a Jay and Silent Bob: Mall Brawl, me surpreendeu um pouco essa reação. Eu entendo que a jogabilidade não vai além do básico de um beat’em up 8-bits. Mas não vi nada tão ofensivo assim dentro da sua proposta. Acho ‘okayzinho’ um adjetivo bem mais apropriado.
Pensando nisso, eu considerei que a minha reação mais positiva com o jogo vem do fato de eu ter pouquíssima referência no gênero de beat’em up. Ainda mais na época do Nintendinho. Meu maior contato com beat’em ups se deu de uns anos para cá e na minha infância o pouco que joguei foi títulos mais populares como Streets of Rage, Captain Commando e, obviamente, o GOTY Batman Returns. Então eu não tenho bagagem suficiente para ter um padrão e sim uma noção mais genérica com base em outros jogos antigos que eu conheço. Para um cara mais “versado” na arte e história do beat’em up, Jay and Silent Bob: Mall Brawl é só mais um joguinho, para mim ainda existe um certo “mistério” e senso de descoberta.
Eu só não sei se compro totalmente que a reação negativa de alguns jogadores é por conta dessa jogabilidade básica. Pelo menos não acredito que seja apenas isso. Basta olhar para Aggelos, ainda que ele seja de um nicho diferente. Não tem muito que o separe de Wonder Boy em termos de mecânicas e o pessoal não parece se incomodar com isso. Se não fosse o problema com os controles, não duvido que a recepção estaria muito positiva. Essa diferença eu acho que tem a ver pelo fato de Aggelos ser um trabalho original em relação a Jay and Silent Bob: Mall Brawl.
Agora calma, leitores!
Ainda que Aggelos seja descaradamente inspirado em Wonder Boy ele é sim um jogo original. Porque, nesse contexto, original não significa que ele é 100% novo. Essa é uma porcentagem virtualmente impossível de se alcançar depois de décadas e mais décadas de desenvolvimento de uma mídia. Tudo hoje que é feito já foi trabalhado, em alguma extensão, por outro jogo no passado. A arte como um todo sempre foi produzida com uma combinação de observação e inspiração.
Então quando eu digo que Aggelos é original é no sentido que ele não faz parte de uma série pré-estabelecida. Ele possui personagens e uma lore própria que existe em paralelo aos jogos que o inspiraram e tem potencial por seguir caminhos diferentes. É por isso que me entristece não haver uma sequência no horizonte, adoraria ver por onde os desenvolvedores levariam esse universo.
Boa parte desses títulos que me refiro como “jogo homenagem” caem nessa categoria. Fight ‘N Rage com suas dezenas de referências é uma propriedade intelectual original. Outro ótimo exemplo é Tormented Souls cuja jogabilidade e atmosfera puxam vários elementos de Resident Evil e Silent Hill, mas que também desenvolve seu próprio lore.
Agora quando voltamos para Jay and Silent Bob: Mall Brawl a história fica um pouquinho diferente, certo? Porque tanto os personagens quanto alguns eventos da trama são derivados dos filmes do Kevin Smith. Embora não seja um trabalho de autoria dele, a originalidade fica mais questionável. Nesse caso, dá mais margem para interpretar o jogo como apenas uma tentativa de mascarar um beat’em up genérico com uma propriedade intelectual conhecida. Tanto que alguns daqueles comentários que destaquei na imagem lá em cima falam algo nesse sentido.
É aí que eu boto minhas fichas de onde reside os limites do “jogo homenagem”.
Para além dos fatores técnicos, ele depende muito também da percepção do público sobre se aquilo parece de fato uma homenagem sincera, ou é apenas um estúdio querendo se apropriar do título para alavancar suas vendas. Assim, não vamos nos iludir, qualquer empresa vai fazer o que for preciso para alcançar mais clientes, seja um grande estúdio como a Nintendo ou um estúdio indie formado por cinco ou dez pessoas. E, até certo ponto, acho que todo mundo está disposto a relevar quando não é algo tão descarado que acaba saindo do “me engana que eu gosto”
Posso até estar sendo injusto falando isso sobre Jay and Silent: Mall Brawl. Vai ver os desenvolvedores são realmente fãs dos filmes do Kevin Smith e de joguinhos de beat’em up antigos e viram ali uma oportunidade para homenagear ambos. Só podiam ter colocado uma carne para acompanhar esse arroz com feijão, né?
O Backlogger precisa do seu apoio para crescer. Então, por favor, compartilhe ou deixe um comentário que isso ajuda imensamente o blog. Você também pode me seguir em outras redes como Bluesky e Tumblr. Para mais textos de Double Down clique aqui.