Como gamers mentem para você: Yasuke e o racismo de dúvida razoável

Yasuke, um dos protagonistas de Assassin's Creed Shadows, inspirado no samurai negro que serviu Oda Nobunaga no Japão feudal

Meses atrás, quando criei a série “Como gamers mentem para você”, eu tinha planos de abordar num desses textos a reação em torno do Yasuke, um dos protagonistas de Asssassin’s Creed Shadows. Acho que todos aqui sabem muito bem do que exatamente eu estou falando, então não precisamos entrar em mais detalhes. Mas se por algum motivo algum de vocês desconhece a “controvérsia” do jogo, eu escrevi um artigo sobre o caso. A minha ideia era utilizar o Yasuke para discutir um conceito que eu venho utilizando há algum tempo, só precisava de uma boa oportunidade. Quisera o destino que a própria Ubisoft criasse uma, afinal essa é uma empresa que até quando você não espera nada ela arranja um jeito de te decepcionar.

Há mais de uma semana, o jornalista Stephen Tolio reportou no Game File que a Ubisoft cancelou um suposto novo jogo de Assassin’s Creed que deveria se passar no período da Reconstrução dos Estados Unidos. O protagonista seria um ex-escravo recrutado pelos Assassinos e que enfrentaria membros da Klu Klux Klan. Essa informação foi confirmada por cinco funcionários da empresa – que por motivos óbvios decidiram manter o anonimato – que também relataram que o cancelamento do projeto foi uma ordem direta da matriz em Paris, dada em julho deste ano.

Chama atenção que, segundo as fontes, a Ubisoft tomou essa decisão por essencialmente dois motivos. O primeiro seria o conturbado atual clima político dos Estados Unidos, o que é um pouco engraçado. Pois essa mesma empresa não se preocupou tanto assim em 2020 quando anunciou Tom Clancy’s Elite Squad. Para quem não se lembra dessa história, um dos grupos terroristas do jogo tinha como símbolo um punho fechado erguido para cima, que foi adotado por muitos movimentos negros na história do país. Inclusive o Black Lives Matter, cujos protestos estavam em alta naquele ano após o assassinato de George Floyd. “Atual clima político dos Estados Unidos”, né?

O segundo motivo é igualmente ridículo: a “controvérsia” do Yasuke. Uso aspas de novo porque a única razão de Assassin’s Creed Shadows causar polêmica é porque existe uma parcela da comunidade gamer tomada por um reacionarismo preconceituoso que se disfarça cada vez pior. Tem um pessoal que gosta de classificar essa gente como “apenas uma minoria barulhenta” achando que isso faz alguma diferença. Se tais gamers existem em maior ou menor número, pouco importa. O barulho que conseguem fazer tem impactado na forma que as pessoas tentam aproveitar a mídia e já são capazes de influenciar a escolha de empresas mais covardes como a supracitada Ubisoft. Me controlando para não fazer piada com o fato de ser um estúdio francês.

É por causa da existência desse tipo de gamer – e alguns que apenas se fingem de gamers para fins de engajamento – que a mera inclusão de um protagonista negro se torna uma “controvérsia”. Que, obviamente, eles nunca irão admitir que vem de um lugar de preconceito. Ah não! Para isso eles tem vários termos especiais. Nos meus tempos de faculdade tinha a tal “agenda do politicamente correto”, depois surgiu a “lacração” e por fim a importada a “cultura woke”. A minha expressão favorita desse meio é a “representatividade forçada”. Todas essas palavrinhas servem como um artifício retórico para criar algo que passei a chamar de racismo de dúvida razoável.

O que eu vou falar se aplica a qualquer forma de preconceito, como homofobia, misoginia, etc. Inclusive toquei nesse exato tópico quando falei dos “memes” da Bella Ramsey por aqui. Só irei focar no racismo porque a pauta do texto são as reações racistas em torno do Yasuke. Que sim, foi um caso de racismo que a gente tem que parar de ficar cheio de dedos para falar o óbvio.

Primeiro precisamos entender que embora pessoas racistas sejam idiotas, elas não são completamente estúpidas. Ainda existe e de vez em quando algum morador de Alphaville que de vez em quando resolve mostrar o contrário, mas no geral os racistas entendem que preconceito é mal visto na esfera pública e está tipificado no nosso código penal. Portanto, essas pessoas sabem que não podem sair por aí falando abertamente o que gostariam de falar. Logo, elas arranjam algumas artimanhas para tal. É necessário um rebranding.

Criei o termo racismo de dúvida razoável com base no conceito de “reasonable doubt” que existe no sistema jurídico americano que eu não tenho certeza se existe no nosso. Se tiver algum advogado de plantão por aí, sinta-se livre para me corrigir nos comentários. Para simplificar, esse é o critério que impede a condenação de um acusado quando há incerteza sobre sua culpa. Hoje a cultura pop – no formato de filmes, séries, HQs, jogos, etc – virou um grande laboratório para observarmos esse fenômeno. Nos últimos anos uma galera se convenceu, e tenta convencer vocês, que existe uma guerra cultural em curso. Porque é isso que eles vão alegar que estão lutando contra.

Nem tudo é preconceito, existe também muita birra ideológica envolvida nesse processo. Porém de qualquer forma as minorias são atingidas nesse fogo cruzado. Acontece que apesar dessa gente não ser totalmente idiota, eles também não lá muito espertos. Por isso que fica fácil perceber a frequência e o padrão nos discursos deles em que os alvos são quase sempre os mesmos tipos de personagens. Assim, o caso do Yasuke se torna emblemático porque, primeiro, a reação foi imediata ao anúncio do personagem. Mal saiu o anúncio do jogo e os olhos dessa galera se fixaram num único detalhe, o samurai negro. Só que não parou por aí, há um segundo ponto que faz o racismo de dúvida razoável ficar tão evidente nessa ocasião: como a narrativa sobre qual era o “problema” do Yasuke foi mudando de acordo com o tempo.

Mas comecemos pelo começo! Eu não tenho a menor dúvida que no momento que essa turma da guerra cultural viu que teria um samurai negro em Assassin’s Creed Shadows eles abriram um enorme sorriso de orelha a orelha. Afinal, parecia o exemplo perfeito da tal “representatividade forçada” que eles fingem que existe. Pô, um negão de armadura desse andando numa boa em pleno Japão feudal? Pode não, man! Como os mais cínicos falaram naquele momento, era uma “imprecisão histórica”. Até porque Assassin’s Creed é conhecido por representar a história com muita fidelidade, não é mesmo?

Só que o que essa galera não contava é que o Yasuke do jogo não era um cara qualquer que a Ubisoft mandou botar no jogo. Na verdade ele é uma figura histórica que esteve no Japão durante o reinado de Oda Nobunaga. O Yasuke real, que acreditas que era de Moçambique, foi levado para o país pelo jesuíta Alessandro Valignano por volta de 1579. Nobunaga tomou interesse por aquele homem negro que acompanhava o jesuíta, lhe deu o nome de Yasuke e o colocou ao seus serviços como samurai. Além disso, Yasuke já havia marcado presença na cultura popular japonesa em diferentes mídias como livros, mangás, animês e jogos. Em 2021, por exemplo, ele protagonizou uma curta série animada homônima que saiu por uma plataforma meio underground, sabe, uma tal de Netflix.

Agora vamos fazer um exercício de boa vontade e supor por um minutinho que essa galera estava genuinamente incomodada com uma suposta “imprecisão histórica” no jogo. Se fosse isso, imagina-se então que quando fosse de conhecimento geral que o Yasuke não só existiu como também já foi representado em outras mídias ao longo desses anos, esse mesmo pessoal pararia de reclamar. Aí eu pergunto, foi isso que aconteceu? Mas é claro que não! Dali para frente a gente viu um verdadeiro show de malabarismo argumentativo com essas pessoas buscando outras justificativas que mostrassem que a reação não tinha qualquer viés racista.

Uma das primeiras tentativas foi a de argumentar que não existia consenso sobre a existência do Yasuke, colocando ele mais como uma lenda, tal como o Rei Arthur. Aqui eles estavam se valendo de uma premissa um pouco – porém bem pouco – mais sólida porque a história do Yasuke é sim nebulosa pela falta de mais registros. Não se sabe muito sobre a existência dele antes de chegar ao Japão com o Alessandro Valignano, tanto que nem sabe-se o nome original do Yasuke. Além disso, o tempo que ele serviu ao lado do Nobunaga foi curto já que o senhor feudal foi assassinado em 1582. Também não se tem conhecimento do que aconteceu com o Yasuke após a morte do Nobunaga, apenas alguns indícios que ele retornou aos jesuítas.

Só que assim, existem registros históricos para apontar a existência de um homem negro chamado Yasuke que estava a serviço do Nobunaga. Isso é mais do que suficiente para uma FICÇÃO HISTÓRICA se estabelecer. Contudo a turma da guerra cultural preferiu utilizar isso como uma prova cabal de que Yasuke não existiu e portanto não deveria ser protagonista. O nível de negacionismo foi tamanho que precisaram trancar a página da Wikipédia do Yasuke depois de várias tentativas de editá-la.

Então quando estava muito feio para o lado deles, o curso da discussão foi corrigido para dizer que o Yasuke embora tenha existido, não era bem um samurai. O que para mim é só outra demonstração do cinismo dessa gente. O incômodo inicial com personagem não era porque havia um SAMURAI negro na história, era porque tinha um HOMEM negro. O título de samurai só passou a ter importância depois.

Quem limitou a discussão apenas pelo lado histórico ainda se deu melhor do que as outras pessoas que tentaram utilizar a franquia de Assassin’s Creed como argumento. Por exemplo, teve gente que tentou justificar a sua reação dizendo que em todos os jogos da série os protagonistas eram nativos da região que se passava a história. Não demorou muito para isso cair por terra pois bastava-se apontar para Asssassin’s Creed: Revelations que você tem um italiano no meio do que hoje é a Turquia e Assassin’s Creed: Black Flag que temos um pirata galês se aventurando pelo Caribe. Alguém reclamou desse detalhe naquela época? Mesmo depois disso ainda teve aqueles que disseram que queriam que o jogo que se passava no Japão tivesse um protagonista japonês. Um desejo até que válida. Mas, assim, faz a gente pensar se eles olharam para a capa de Assassin’s Creed Shadows direito.

Capa do jogo Assassin's Creed Shadows destacando os dois protagonistas: o samurai Yasuke e a ninja Naoe
Aquela kunoichi ali é claramente chilena!!!

Eventualmente esse pessoal parou de concentrar sua energia no Yasuke e a moveu para o jogo em si. Durante o lançamento havia toda uma torcida para que o jogo flopasse. Semana sim, semana também, eu me deparava com uma postagem ou vídeo no YouTube dizendo que as vendas de Assassin’s Creed Shadows estavam baixas. Mesmo quando saía uma notícia indicando o contrário, vinha alguém tentando argumentar do porquê aquilo estava errado e na verdade o jogo era um fracasso. De novo isso não é nenhuma novidade, o primeiro texto de “Como gamers mentem para você” já discute isso. Outra vez se valeram de uma premissa que permite mais ambiguidade uma vez que a Ubisoft é uma das empresas mais odiadas por gamers de todos os espectros.

Contudo, mais uma vez eu abro um questionamento, quando é que houve uma comoção tão grande para um jogo de Assassin’s Creed fracassar? Vamos ser sonsos de tratar tudo isso como uma mera coincidência? Com isso eu gostaria de consolidar esse conceito de racismo de dúvida razoável. Ele não é uma variação do racismo que se manifesta nesses grupos gamers. Até porque isso é apenas preconceito, puro e simples. O racismo de dúvida razoável é nada mais do que uma tática evasiva, um mecanismo de defesa para aqueles que acreditam estar numa guerra cultural. Porém não para se resguardar legalmente porque Nenhum desses caras será condenado por odiar minorias nos jogos.

O objetivo dessa galera é criar uma ilusão de que o fruto da sua revolta não tem uma raiz racista. É a forma de assegurar para si mesmos, e mais ainda para a sua audiência ou comunidade, que ninguém ali é preconceituoso. Estão todos apenas combatendo a “lacração no mundo dos games”, sabe como é?

Acabei de me lembrar de uma anedota pessoal numa dessas mil discussões que tive sobre o Yasuke pela internet. No auge do cinismo, um usuário tentou argumentar que o problema do personagem é que ele representava o “o apagamento do homem asiático”. Ah, sim! Realmente quando se trata de vídeo games a gente tem pouquíssimos japoneses em posição de destaque. Sekiro: Shadows Die Twice não ganhou o GOTY em 2019. Ghost of Tsushima não foi um dos jogos de maior sucesso de 2020. A série Yakuza não tem se tornado cada vez mais popular nesses últimos anos. Coitado do homem asiático, não tem mais espaço na mídia!

Felizmente existe um grande calcanhar de Aquiles nessa história. Essa retórica só consegue convencer aqueles que já fazem parte desses grupos. A lógica que utilizam só faz sentido dentro das suas próprias premissas. Quem olha de fora consegue enxergar a verdade nua e crua de que toda essa gente só está tentando arranjar as desculpas mais esfarrapadas para não admitir que estão reclamando que um dos protagonistas do jogo é negro.


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