Dodgeball Academia é um excelente exemplo da influência do movimento antropofágico em como o brasileiro consome e produz arte
Essa imagem representa o Brasil mais do que qualquer livro do romantismo

Ultimamente sinto que desenvolvi uma certa dificuldade para fazer críticas de jogos aqui no Backlogger. Não que seja um formato muito complicado, o problema é o dilema no qual eu entro sempre que me meto a escrever um desses textos. Cada dia que passa eu fico com menos interesse no padrão que o gamer tem sobre como uma crítica/resenha de jogo deve ser. Sabem do que eu estou falando, né? Aquele roteiro manjado de falar da história, da jogabilidade, dos gráficos e *argh* do desempenho. Quase como se fosse uma checklist.

Então, hoje em dia eu DETESTO esse formato! Até que não ligo tanto em ver outras pessoas replicando-o, porém eu não consigo escrever assim porque faz com que eu me sinta analisando um eletrodoméstico. Agora sempre que inicio uma crítica eu tento definir antes um tema ou um objetivo. Exemplificando:

  • Trek to Yomi: quis discutir como o jogo é muito mais interessante como uma experiência estética do que como um jogo de ação orientado pela jogabilidade;
  • Dave the Diver: aqui argumentei como o lado gerencial dele atrapalhava minha experiência, pois meu interesse estava na outra metade do jogo;
  • Metamorfose S: tentei mostrar como um jogo amador cheio de problemas ainda consegue causar algum fascínio para além de uma análise puramente técnica.

Ao que nos leva a Dodgeball Academia, do brasileiro Ivan Freire.

Uma das primeiras batalhas de Dodgeball Academia
Obrigado por ser desse jeito, Brasil!

Ele já tinha passado por aqui num texto mais descontraído. Dodgeball Academia foi responsável por reacender minha paixão por vídeo games num período que andava meio desanimado para jogar. Eu até queria discutir um pouco mais sobre ele, contudo não sabia o que falar. Eu até poderia mergulhar na jogabilidade e explicar o que faz o combate baseado em queimada tão divertido. Só que isso me pareceu algo que alguém poderia encontrar em qualquer outra resenha, não precisava chover no molhado. Daí eu fiquei vários e vários dias buscando uma perspectiva para utilizar numa crítica. Depois de tanto rezar por uma inspiração, ela enfim me veio de onde eu menos esperava: uma treta de Twitter sobre literatura nacional.

Qual era a discussão pouco importa, o que vale a pena de se destacar é o que surgiu a partir dela. Em meio as opiniões que eram lançadas sobre a pauta, eu pesquei uma do Frost do canal Lixeira do Frost sobre a ideia de antropofagia cultural. Até que eu tinha um entendimento um tanto grosseiro da ideia por trás do conceito que vi comentários de tempos atrás que discutiam como a principal identidade brasileira é não se ter uma. Isso de forma alguma é um traço negativo da nossa cultura, muito pelo contrário. A falta de uma identidade fechada que rege a nossa produção cultural é o que a torna tão rica e, acima de tudo, tão diversa. E já sabemos isso desde a década de 20!

Manifesto Antropófago, de Oswald de Andrade

Olha, eu respeito a inteligência de vocês o bastante para não tentar enganá-los. Sei muito pouco sobre a história da arte, tanto no âmbito nacional quanto internacional. Tudo que eu aprendi, bem por cima, foi só um contexto para essa crítica. Então recomendo vocês irem atrás de pessoas mais competentes para se informarem melhor desse tópico. Aqui fica um pontapé inicial de fácil acesso para todo mundo:

Pois bem, o que posso adiantar para vocês é que o movimento antropofágico foi uma manifestação artística capitaneada por duas das grandes figuras da história da arte brasileira, Oswald de Andrade e Tarsila do Amaral, que se estabeleceu pelo Manifesto Antropófago, publicado em 1928.

O movimento surge de ideais da corrente modernista ali do começo do século XX que propunha o “canibalismo” das técnicas vindas do estrangeiro na produção de algo original brasileiro. Ou seja, não apenas reproduzir o que vinha de fora e sim assimilá-los a nossa cultura criando então uma nova obra a partir dessas referências. Tupi or not tupi, that is the question!

Isso reflete muito a imagem que se tem de um Brasil multifacetado, que reúne tantos conhecimentos e populações diferentes dentro de si que é impossível – e eu diria desnecessário – criar um retrato que represente a totalidade do seu universo cultural. Uma frase que eu costumo dizer (dentro da minha cabeça) é que somos dezenas de nações diferentes operando sob a mesma bandeira.

Certo… mas como é que Dodgeball Academia se encaixa nessa história? Para isso vamos contextualizar brevemente o jogo, apesar de que o nome já meio que entrega boa parte do que você pode esperar dele em termos de gameplay.

Hmm, qual será as principais influências de Dodgeball Academia? *emoji pensativo*

Como jogo, Dodgeball Academia é um RPG de ação cujo combate e história giram em torno de partidas de queimada. Nele você controla Otto, um garoto que é aceito na renomada escola que dá nome ao jogo para jovens que buscam uma vida no esporte. E sim, queimada é esporte, não sejam chatos! Ao entrarem na Dodgeball Academia os alunos precisam tocar na Bola do Herói… Meu cérebro de quinta-série não vai suportar esse texto. O artefato faz com que eles despertem seus poderes interiores que podem utilizar durante as partidas.

A lógica do combate combina as regras do jogo real de queimada com diversos elementos típicos dos RPGs eletrônicos. Os lances de bola são o equivalente de ataques, porém ao acertar um inimigo ele não é eliminado da partida e sim perde uma determinada quantia de HP. Há também atributos como Força e Agilidade, status negativos, itens consumíveis, equipamentos, experiência, etc. Com o tempo novas regras vão surgindo nas partidas/batalhas. Você pode carregar seus ataques, recruta novos personagens para fazer parte do seu time – com um máximo de três por equipe – e também uma barra que vai carregando ao longo da luta que libera um especial. Isso varia de personagem para personagem bem como as ações que eles podem efetuar no combate.

Dá para notar que o Ivan teve uma grande influência de RPGs japoneses. Inclusive a forma como muito das partidas iniciam é uma referência direta aos jogos de Pokémon, pois os oponentes se encontram espalhados pelo mapa, geralmente no meio caminho que você precisa passar. Caso entre no campo de visão deles, rola uma transição e você é movido para a tela de batalha. O mais legal é que as batalhas nunca parecem ser as mesmas dada a variedade de mecânicas que você encontra em inimigos e nos próprios personagens selecionáveis.

Não tentem defender, confiem em mim!

Otto, por exemplo, pode pular, que dá mais força aos seus ataques e serve também para desviar de alguns lances, e também consegue – ALERTA QUINTA-SÉRIE – agarrar as bolas dos oponentes com o timing certo. Além disso, depois ele libera uma espécie de hadouken que acerta todos os inimigos em linha reta. jogam em você. Mina, por outro lado, pode rolar para escapar dos ataques e em vez de agarrar ela é capaz de – DE NOVO – chutar as bolas dos seus inimigos de volta a eles. Bexigo tem a mesma habilidade de agarrar de Otto, porém seu poder especial cria uma área no seu lado do campo que recupera o HP da equipe.

O combate é imensamente divertido porque Dodgeball Academia sempre arranja formas de não deixar que ele caia na repetição. Os oponentes tem uma vasta gama de habilidades diferentes e eu achei muito impressionante como o Ivan conseguiu criar chefões bem únicos. Sempre que você acha que já entendeu todas as possibilidades de ataques do jogo, surge um novo oponente com uma habilidade distinta. Mas de todas as informações que dei aqui eu gostaria que vocês se focassem em ” teve uma grande influência de RPGs japoneses.

As referências não se limitam apenas na jogabilidade. Não precisa avançar muito na história para notar que Dodgeball Academia é também muito influenciado por mangás e animês de dois gêneros específicos. O mais óbvio é, com certeza, o de esportes. Aqui até eu gostaria de citar um Slam Dunk, porém a comparação mais apropriada seria Kuroko no Basket, onde as habilidades dos personagens são essencialmente superpoderes.

HADOUKEN, CARAI!!!

Além dessas histórias, a outra influência vem do gênero, que vou chamar de informal, dos battle shounens. Aliás, tem não apenas uma, mas como duas passagens do jogo em que os personagens liberam suas habilidades especiais graças ao famoso “poder da amizade”. Battle shounens também costumam circular um tema específico, como os piratas de One Piece e os ninjas de Naruto, e esse tema geralmente influencia também a forma o universo da obra se organiza. É a mesma coisa em Dodgeball Academia já que tudo nos leva de volta aos jogos de queimada.

Na ambientação também você nota influência de outras culturas. A tal da Dodgeball Academia mais parece uma universidade tirada de alguma série americana do que qualquer escola brasileira. Falando nisso, mais a frente na história entra a figura do pai de Otto que se opõe a decisão do filho em buscar um futuro no esporte. Tem um drama mais típico de filme americano de esporte do que esse?

Contudo quando você olha para os personagens, ainda que tenha figuras como Kyabo que é um típico delinquente de “animê de escolinha”, a “brasileiridade” do jogo fica mais aparente. Os personagens usam gírias, memes e expressões idiomáticas que são claramente locais. Algumas piadas então são piscadinhas descaradas para nós. O melhor exemplo é quando aparece o grupo dos bolaquadráticos – uma paródia descarada dos terraplanistas – que querem provar que todas as bolas são quadradas. Qualquer um sabe que isso é uma referência ao Chaves, que talvez seja o maior exemplo de obra estrangeira que foi totalmente assimilada na cultura pop nacional.

O único erro é não ter um personagem chamado Kiko

Consciente ou inconscientemente, ao criar Dodgeball Academia o Ivan Freire incorporou vários tropos e elementos tirados de dezenas de referências de mídias diversas – vídeo games, HQs, séries, filmes, etc – para criar algo que fosse seu. Não existe uma preocupação em retratar um teórico “Brasil real” tal como ele não está apenas reproduzindo a cultura alheia. Ele pega todos esses aspectos e os utiliza ao seu bel-prazer, resultando em algo que é ao mesmo tempo familiar e novo.

A gameplay de Dodgeball Academia é imensamente satisfatória. É um design de combate criativo tanto conceitualmente quanto na forma que vai se ampliando ao longo do jogo. A história também é um melodrama fantástico que te cativa e diverte com a dinâmica dos personagens. Ela produz um investimento emocional no jogo que vai além de gostar do “queimada fu” dele. Porém, para mim, o que destaca o jogo dos demais é essa forte expressão da antropofagia cultural em que o brasileiro, do artista até o público, se insere.

Dodgeball Academia não é uma cópia de obras japoneses e também não rejeita sua “brasileiridade”. Ele entende como nós, consumidores e criadores, não nos prendemos exclusivamente a referências nacionais. Nós sugamos tudo num vórtice criativo, que não possui limites nem no espaço e nem no tempo, para criar uma maravilhosa salada mista cultural tão gostosa de se experimentar.


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2 thoughts on “Dodgeball Academia: queimada e antropofagia cultural”
  1. Resolvi dar uma olhada nos textos que perdi desde a última vez que um post seu apareceu para mim no Twitter e não me arrependo, esse é o meu favorito deste blog até agora. Nunca sequer pensei na antropofagia cultural dentro do contexto de games e, como indie dev planejando primeiro jogo, este texto me faz pensar bastante sobre a identidade cultural de meu jogo.

    Sendo meu jogo um dungeoncrawler em um mundo fantasia-medieval onde estou pegando bastante inspiração de outras culturas, me pergunto como poderia mostrar meu “brasileirismo” no jogo… ou se sequer devo pensar nisso pois possa ser algo que deve acontecer naturalmente kkkkkkkkkkk

    Adoro essa direção das resenhas, dá muito mais para pensar sobre do que apenas um “ah o jogo parece ser bom/ruim”!

    1. Hahaha, valeu!

      Foi de uns tempos para cá que eu comecei a refletir nessa questão de como a principal identidade brasileira é não ter uma identidade fixa. A gente pode até ter uns símbolos nossos, mas no geral o brasileiro é melhor em assimilar culturas diferentes e fazer algo próprio. Então se você quer deixar seu jogo com “cara de Brasil” vai vir naturalmente com essa antropofagia cultural nossa.

      Também tô gostando jogar as minhas resenhas mais pra esse lado de apresentar uma visão específica sobre o jogo do que uma análise meio que de geladeira falando “gráfico bom, jogabilidade boa, história mais ou menos, etc”

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