Não satisfeito em chutar esse vespeiro uma vez, resolvi fazê-lo de novo. Afinal o que é a vida sem um pouco de emoção, né? Acho que não preciso recapitular a treta de semana passada envolvendo Palworld porque já estão todos informados. A única coisa que preciso pontuar é que acabou sobrando para quem estava quieto no seu canto. Deram um jeito de fomentar uma segunda briga com Dragon Quest vs Pokémon. Bom, nem sei se vale a pena chamar de briga até porque foram os defensores de Palworld que envolveram o nome de Dragon Quest, os fãs dessa franquia seguem na deles jogando o spin-off Monsters: The Dark Prince.
Mas como a polêmica já foi solta no ar, nos resta aproveitar para discutir algumas questões dessa história que valem a pena debater mesmo. Em relação a ideia de que Pokémon teria copiado os designs dos monstros de Dragon Quest, eu dou o assunto por encerrado. A esse ponto quem ainda usa seriamente um meme de 2020 como base argumentativa não vai ser convencido nem com todo bom-senso do mundo. Porém no que tange a discussões relacionadas a jogabilidade, especificamente a mecânica de recrutamento de monstros, acho que ainda existe esperança de se ter um diálogo produtivo. E pra isso eu vou envolver uma galerinha aí.
Apesar do foco da discussão ser os designs de Dragon Quest e Pokémon, a jogabilidade entrou pela tangente também. Conforme o argumento do meme ficou mais ridículo, outras pessoas puxaram a carta de que em Dragon Quest V: Hand of the Heavenly Bride, lançado quatro anos antes de Pokémon Red & Blue, já tinha uma mecânica capturar/recrutar monstros. Outros se achando ainda mais espertos, trouxeram para mesa também Digital Devil Story: Megami Tensei que é de 1987. Nele você consegue negociar com alguns demônios que enfrenta pelos mapas e convencê-los a se juntar a sua equipe.
Então alguns defensores do grande Pal agora usam o discurso que Pokémon também copiou a jogabilidade desses dois jogos. Contudo, lamento informar aos espertões de plantão, mas esse argumento chega ser tão ridículo quanto ao meme. Ok, isso foi exagero. Até que existe uma base mais sólida aqui. Só que para ela se sustentar você tem que reduzir a jogabilidade desses três jogos apenas ao recrutamento de monstros. Quando a gente olha para Megami Tensei, Dragon Quest e Pokémon é evidente que são gameplays muito distintas uma das outras. Então essa será nossa pauta do dia!
Nos próximos tópicos eu irei analisar cada um dos jogos citados no que tange as suas mecânicas de captura e recrutamento de monstros. Também decidi jogar Digimon World no pacote. Acredito que aqui temos uma discussão bem mais válida e mais proveitosa no entendimento de como jogos e suas particularidades funcionam. Assim espero combater o uso de simplificações bestas que só servem alimentar briga de torcida. E também aproveitar que Dragon Quest vs Pokémon é uma busca sendo muito feita no Google!
Vale destacar também que eu vou me focar apenas nos primeiros jogos que apresentaram essas mecânicas. Portanto como a jogabilidade foi mudando de acordo com o tempo não será tema do artigo. Tudo certo então? Show! Vamos por ordem cronológica:
DIGITAL DEVIL STORY: MEGAMI TENSEI (1987)
Nessa segunda metade dos anos 80 é quando surge algumas das grandes franquias de JRPGs. Em 1986 vem o primeiro jogo de Dragon Quest e no ano seguinte também estreariam Megami Tensei* e Final Fantasy. Todas as três tiveram com uma grande influência Wizardry, uma das pioneiras dos jogos eletrônicos de RPG, e cada uma soube estabelecer uma personalidade própria que foi se desenvolvendo nos anos seguintes.
*Antes de prosseguir, deixa eu avisar que sou preguiçoso. Então para não ficar digitando o tempo todo Digital Devil Story: Megami Tensei eu vou me referir a ele apenas como Megami Tensei. Agora quando eu estiver me referindo especificamente ao jogo de 1987 ou a franquia, vocês que se virem para entender pelo contexto.
Nesse primeiro momento, Megami Tensei teve duas versões diferentes em circulação. Uma era um RPG de ação com vista por cima feito para computadores pela Telenet Japan. A segunda era de autoria da Atlus, um RPG dungeon-crawler em primeira pessoa lançada no NES que teve a melhor recepção e, portanto, se tornou o molde da franquia. Uma das suas características que chamou mais atenção e viria ser a mais recorrente mecânica dos seus jogos foi o sistema de negociação com demônios.
Na premissa de Megami Tensei, o protagonista Akemi Nakajima é um estudante que cria um programa capaz de invocar demônios. Quem nunca? Porém as coisas saem do controle e o programa liberta um poderoso demônio, Lúcifer, com sua horda. Junto da sua namorada Yumiko Shirasagi, Nakajima precisa fechar a entrada entre o mundo dos humanos e dos demônios e para isso os estudantes precisarão da ajuda do outro lado.
Yumiko é a única personagem a acompanhar Nakajima por todas as dungeons de Megami Tensei. Porém, para facilitar a jornada, o jogo te dá a possibilidade de convencer alguns monstros a se aliar aos protagonistas. Uma vez que eles se juntam a equipe, você pode usar dinheiro para invocar até quatro deles para te ajudarem nas batalhas. Eu já estou pensando no tópico seguinte, então gostaria de reforçar que essa é uma mecânica extremamente necessária para conseguir chegar até o fim da história.
Conforme você avança em Megami Tensei, os monstros ficam progressivamente mais fortes. Então, caso você não se alie aos demônios, as suas chances de conseguir sobreviver ficam próximas de zero. Só que não basta apenas recrutá-los porque, ao contrário dos protagonistas, os demônios não sobem de nível. Você tem duas escolhas: convencer monstros mais fortes a se juntar a você ou então fundir aqueles que você já tem para criar versões mais poderosas. Como se isso já não bastasse, além do dinheiro que você gasta para invocá-los, os demônios consomem magnetite. Esses itens são deixados por outros monstros ao fim da batalha e impedem que seus aliados percam HP cada vez que você dá um passo. Então pode-se dizer que além da mecânica de recrutamento, Megami Tensei também demandava um gerenciamento de recursos por parte do jogador.
Foi dessa forma que Megami Tensei se destacou entre o público japonês na época. Conforme a franquia foi crescendo também conquistou um nicho ocidental e a negociação com demônios passou a ser um dos elementos fundamentais dos seus títulos. Não seria exagero apontar esse jogo com a principal inspiração para muitas outras franquias futuras que utilizariam mecânicas parecidas. Porém, como eu destaquei na introdução, precisamos nos atentar as nuances que cada uma acrescenta ou modifica nesse conceito. Além disso, tendo em vista o próximo exemplo, acho que é necessário destacar o quão integral a mecânica é ou não para a gameplay,
DRAGON QUEST V: HAND OF THE HEAVENLY BRIDE (1992)
Vou começar com umas palavras fortes aqui: o sistema de recrutamento de Dragon Quest não importa muita coisa dentro do jogo. Pronto, com isso podemos ir para o contexto!
Quando Hand of the Heavenly Bride foi produzido, Dragon Quest já era uma franquia mais do que sólida. Dragon Quest III: The Seeds of Salvation trouxe uma jogabilidade bem otimizada enquanto Dragon Quest IV: Chapters of the Chosen evoluiu a magistralmente a narrativa da série. Dragon Quest V, por sua vez, é simplesmente um jogo perfeito e até o momento o meu favorito dentre todos os que joguei. Além de aperfeiçoar ainda mais tudo que os jogos da franquia vinham fazendo de certo, ele traz uma novidade que marcaria presença em outros títulos futuros. Depois que o personagem chega na vida adulta, existe a possibilidade dele recrutar alguns monstros para sua equipe depois de derrotá-los.
Em Dragon Quest I – e eu não tenho certeza se isso é um elemento da jogabilidade mesmo ou só coisa da minha cabeça – conforme você fica mais forte alguns monstros passam a fugir das batalhas com mais frequência. Com isso o jogo cria a ideia que seu personagens está ficando mais imponente, mais intimidador. Dragon Quest V, por sua vez, inverte essa lógica.
Os monstros não passam a temer o protagonista e sim admirá-lo pela sua força. Desse momento em diante, sempre que uma luta termina existe a pequena possibilidade de um deles pedir para te seguir. As chances são aleatórias, então não é só uma questão de ficar mais forte como também de sorte. Os monstros recrutados funcionam praticamente da mesma forma que os personagens humanos. Eles passam de nível, usam equipamentos, podem ser controlados em batalhas e alguns tem habilidades especiais.
Só que há um porém nessa mecânica de Dragon Quest V e um o motivo pelo qual acho ridículo de alegar que Pokémon o copiou. Ao contrário do que vimos em Megami Tensei, o recrutamento de monstros não representa um papel tão fundamental na sua gameplay. Ela está ali só para preencher uma necessidade momentânea e não é a toa que esse é o sistema mais simples que você verá entre os quatro exemplos.
Em várias passagens de Dragon Quest V, o protagonista fica com uma equipe incompleta, às vezes estando até sozinho. Então os monstros vem como uma forma de preencher essas lacunas até que novos companheiros surjam. Depois de um tempo o recrutamento deixa de ser importante porque os personagens se juntam a você são tão úteis quanto.
Não ajuda que, por algum motivo, decidiram justo nesse jogo reduzir o tamanho da equipe para apenas 3 membros por vez sendo que um lugar é do protagonista. Logo você não tem tantas oportunidades assim para aproveitar os monstros. Inclusive, quando zerei Dragon Quest V anos atrás, eu nem cheguei a usar a mecânica direito. A maior parte do tempo eu usava o Borongo (nome original objetivamente melhor que Saber), um leopardo dentes-de-sabre cujo recrutamento já faz parte do roteiro do jogo. A outra vaga era preenchida pela esposa do protagonista e depois eu passei a usar ele e seus filhos.
O sistema de recrutamento, no final, serve mais para quem está a fim de colecionar monstros. Os demais jogadores não encontrarão muitos incentivos para explorar a mecânica. Pode levar muito tempo para você conseguir recrutar alguns monstros que tem probabilidades baixas de se unir ao jogador. Ainda por cima, depois você ainda terá que treiná-los um a um. No máximo dois a dois. Por mais que eu considero Dragon Quest V um jogo perfeito, dá pra facilmente ignorar a parte dos monstros.
POKÉMON RED & BLUE (1996)
Pokémon cresceu tanto como franquia que eu acredito que o melhor adjetivo que o descreva é ‘hegemônico’. Então é mais do que natural que, no imaginário popular, ele seja o nome que vem a cabeça quando se pensa em captura de monstros. Não significa que tantos os jogos que o antecederam quanto aqueles que vieram depois não tenham seus méritos próprios. Só estou ilustrando que dado o seu tamanho, é compreensível que as pessoas tenham-no como a principal referência dessa mecânica.
Apesar do texto ser focado na jogabilidade, no caso de Pokémon eu não acho que esse seja a principal qualidade de Red & Blue. O sistema evidentemente é mais sofisticado do que o de Dragon Quest V e se distingue também de Megami Tensei. Mas o que se destaca mesmo é todo o universo de Pokémon ser construído ao redor do conceito de captura dos monstros.
Não é mais uma ferramenta para te ajudar a avançar no jogo, ela é uma parte integral da narrativa. Portanto, o que Red & Blue consegue fazer de mais diferente do que seus antecessores é estabelecer um vínculo emocional com os monstros capturados.
Tanto em Megami Tensei quanto em Dragon Quest V, com exceção do Borongo, os monstros são meros utensílios para o jogador. É em Pokémon que nasce um companheirismo verdadeiro, mesmo que estejamos cientes que são apenas pixels se movendo num jogo eletrônico. Por isso que, acredito eu, a maioria monta suas equipes não pelos atributos de cada pokémon e sim por puro gosto pessoal. A gente escolhe aqueles pelos quais nos afeiçoamos mais. Essa é a razão, por exemplo, que dessa primeira leva de jogos da franquia o meu favorito costumava ser Pokémon Yellow, pois dava para ter o Pikachu, Charmander, Squirtle e Bulbasaur no meu time já que eu jogava por emuladores. E mesmo que tivesse um Game Boy isso também não seria possível porque ninguém do meu círculo de amigos chegou a ter o portátil.
Mesmo que eu ache esse aspecto de world-building o mais interessante, também não dá para negar que a jogabilidade ajuda a criar uma conexão emocional com os pokémons. Porque você ter que treiná-los, fazê-los evoluir, comprar itens, ensinar golpes, levar até o PokéCenter, tudo isso colabora para fortalecer o seu vínculo com eles. É assim que o jogo te transmite a sensação de ter um bichinho de estimação virtual e não se limitar a enxergá-los apenas com um objetivo utilitário dentro daquele universo.
DIGIMON WORLD (1999)
Eu não sei se continua popular, mas na minha infância havia esses aparelhinhos eletrônicos chamados Tamagotchi que permitiam você cuidar de um bichinho virtual. Se a memória não me falha, era uma febre que vendia em qualquer feira. Agora adulto eu tenho noção que eles pertenciam a uma linha de produtos da Bandai voltada para garotas e que também possuía uma contraparte para o os garotos chamada de Digital Monster. Eventualmente esses produtos se tornaram a franquia de Digimon que ganhou mais atenção em 1999 quando saiu o primeiro animê e também o jogo, Digimon World, para PlayStation.
Essa série World é um tanto curiosa de se observar. Ao contrário das demais franquias que mantinham uma certa consistência de gameplay, cada jogo mudava drasticamente do anterior. O primeiro tinha como foco a criação dos bichinhos virtuais, o segundo é um RPG dungeon-crawler e o terceiro vai na mesma linha dos JRPGs da época. Particularmente eu nunca fui muito chegado aos jogos de Digimon e sempre preferi os desenhos. Desses três citados, acho que o primeiro foi o que mais se sobressaiu. Ou então é apenas aquele que me lembro mais. Nele você recebe um único digimon e precisa treiná-lo para alcançar os ranks mais altos de digievoluções para vencer monstros mais fortes.
O que me motivou a adicionar Digimon World nessa lista é que vejo que ele é o que melhor consegue representar a ideia de cuidar dos monstros através da jogabilidade. Até mais do que Pokémon, pelo menos naquele momento em que ambas as marcas se encontravam. Porque nele não é apenas uma questão de treinar o seu digimon parceiro para ele ficar mais forte, você precisa de fato cuidar dele: tem que dar comida, por pra dormir, levar ao banheiro, etc.
Além disso, o jogo traz também a questão de maturidade. Com o tempo o digimon envelhece e eventualmente “morre”. Você recebe então um digiovo e tem que reiniciar o processo de criação do seu monstro de novo, porém com atributos melhores.
Acho que esse foi o motivo Digimon World não engrenar tanto quanto Pokémon. Para muita gente a ideia de ter que evoluir seu digimon tudo de novo tornou o jogo muito frustrante. Eu mesmo até hoje nunca o zerei e acabo sempre abandonando pela metade quando tento jogá-lo novamente. De qualquer forma, consigo reconhecê-lo como uma tradução muito boa do aparelho eletrônico para o jogo eletrônico e que soube criar uma abordagem própria frente a todas essas outras franquias comentadas.
E O PALWORLD, BELMONTEIRO?
Ah não, esse aí é só cópia mesmo!
Palma, palma! Não priemos cânico. Não serei leviano igual aqueles que criaram a briga tosca de Dragon Quest vs Pokémon. É que se o assunto for jogabilidade eu acho que Palworld é o que menos tem razão para entrar nessa lista. A polêmica com Pokémon surgiu por conta dos modelos dos pals (maldita quinta-série!) e não exatamente pelas mecânicas do jogo. Se a gente fosse levar isso em consideração teríamos que trazer outra meia dúzia de jogos para o debate.
De fato tem ali em Palworld temos uma mecânica de captura de monstros que parece bastante com Pokémon. Não vamos fingir que a pal sphere é outra coisa que não uma pokébola de nome trocado. Contudo, olhando o jogo como todo, a gente percebe que a gameplay de Palworld tem muito mais a ver com jogos de mundo aberto que utilizam mecânicas de sobrevivência e construção que surgiram nesse mercado pós-Minecraft.
Como eu já falei no texto anterior, Palworld é só um jogo produzido por lógica de algoritmo. Se você olhar para outros títulos da Pocket Pair, como aquele tal de Craftopia ou o futuro lançamento deles de Never Grave, a “filosofia” da empresa torna-se bem evidente. O que ela faz é reciclar um conjunto de mecânicas de outros jogos populares que já estabeleceram um público. Não existe inspiração ou tributo a nada por aqui. Não é nem mesmo uma paródia como alguns tentam defender, pois esse tipo de releitura parte de um lugar de admiração.
Bom, ok, foi outro exagero meu! Como um colega meu me disse, talvez Palworld só não seja tão intencional assim na sua paródia e apenas pensou num jeito “inusitado” de utilizar uma propriedade intelectual popular. De certa forma, Palworld seria o equivalente daqueles filmes de terror que são produzidos no momento que determinado personagem infantil cai em domínio público. Sim, eu estou olhando para você, slasher do Ursinho Pooh! Por isso que, pra mim, não passa de uma replicação barata do que se mostrou funcionar com alguma parcela de gamers. Ele não quer adicionar ou modifica nada, nem mesmo tenta confrontar de verdade as normas. É só um piadinha pueril que se apropria daquilo que deu certo com o público.
Megami Tensei, Dragon Quest, Pokémon e Digimon tiveram muito mais a agregar aos vídeo games como mídia. Cada um lidou, para melhor ou para pior, com as mecânicas de captura e recrutamento de monstros ao seu modo e assim construíram um nome para si. Eles TINHAM algo a mostrar para novos e velhos jogadores. Palworld, tadinho, esse realmente só consegue ficar no meme mesmo!
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