
Há um tempo atrás um amigo meu lá do Bluesky mencionou o filme brasileiro Nina. Curioso, eu anotei aqui para ver num futuro que eu não sabia se seria distante ou próximo. Não levou muito tempo graças ao frenesi causado por Ainda Estou Aqui nas redes sociais. Com o sucesso do filme, nacional e internacionalmente, algumas pessoas aproveitaram para recomendar algumas obras do nosso tão subestimado (e tão deturpado) cinema. Isso me fez lembrar da postagem do meu amigo e resolvi dar uma chance para a recomendação dele. E acabou sendo uma escolha bem acertada, pois eu já li um livro!
O sentido vem daqui uns parágrafos.
Nina conta a história de, bom, Nina! A moça – interpretada pela Guta Stresser – é uma jovem aspirante a artista que vive numa metrópole desoladora, opressiva e desumana. E que não engana ninguém que é São Paulo. Sem muito dinheiro para sobreviver, Nina aluga um quarto no apartamento de Dona Eulália, uma senhora idosa e mesquinha. A relação das duas não é nada amigável, com a velha aproveitando qualquer oportunidade para maltratar Nina das mais variadas formas.
O filme abre com sua protagonista gemendo numa cama, atormentada por vários pesadelos que nos pega um pouco desprevenidos. Sem que saibamos, a história volta para dias atrás quando temos uma outra Nina, bem mais alegre enquanto desenha no seu caderno numa lanchonete. Ana, a melhor amiga da protagonista, decide então perguntar-lhe se ela a vê como uma pessoa ordinária ou extraordinária. É um diálogo que não chama muita atenção a princípio, mas que serve como a primeira alusão a obra na qual o filme se baseia.
Nina é uma releitura moderna de Crime e Castigo, uma das maiores obras literárias russas do séc. XIX escrita por Fiódor Dostoiévski. O diálogo de Ana e Nina é uma referência a uma tese que o protagonista de Crime e Castigo, Raskólnikov, defende num dos seus artigos quando era estudante de Direito em São Petersburgo. Na visão do rapaz, o mundo se divide entre pessoas ordinárias e extraordinárias, estas últimas as responsáveis pelo avanço da humanidade como um todo. Portanto, Raskólnikov argumenta que a essas pessoas se deve o direito de quebrar certas regras, até mesmo de cometer crimes, as suas ações a longo prazo trarão benefícios para a sua sociedade.
No livro, o protagonista usa esse argumento para tentar racionalizar um crime que ele planeja cometer. Pobre, sem trabalho e vivendo num minúsculo apartamento, Raskólnikov pensa em matar uma velha penhorista para conseguir um dinheiro que o tirasse da sua condição atual. Isso porque ele acredita que está destinado a grandes feitos. Isso faz de Crime e Castigo um dos mais importantes ensaios sobre moralidade da literatura. Isso sem contar os outros temas que o livro aborda como existencialismo, niilismo, religião, etc.
Por sua vez, Nina não chega a ser tão complexo assim. Até porque não teria como, afinal é um longa-metragem com menos de uma hora e meia de duração e não uma maçaroca literária de quase 600 páginas. Além do arco de Raskólnikov, a história de Crime e Castigo tem diversas ramificações narrativas com personagens que giram em torno do protagonista. Já o filme escolhe focar apenas no tema da culpa, mostrando todo o turbilhão de emoções que primeiro leva a Nina a cometer um crime e que depois a assombra.
Contudo, às vezes parece que o filme quer ter todas essas ramificações, só não pode por questão de tempo. Digo isso porque até o terceiro ato somos constantemente introduzidos a novos personagens, alguns deles interpretados por atores de peso que são absurdamente desperdiçados.
Wagner Moura interpreta um cego com o qual Nina tem um rápido encontro sexual e nunca mais é visto no filme. Selton Mello interpreta um parceiro drogado de Ana que não deve ter falado mais de duas linhas na única cena que ele parece. Matheus Nachtergaele faz uma ponta como um pintor que está trabalhando na reforma de um dos apartamentos do prédio que Nina vive que só está ali por conta de algo que deixarei para falar mais a frente. São tantos nomes reconhecíveis com pouquíssimo tempo de de tela que mais parece que o filme só estava tentando gerar um pouco mais de atenção para a sua produção através de elenco.
A jornada de Nina até o fatídico assassinato da idosa segue um caminho diferente de Raskólnikov. No livro já iniciamos com ele disposto a cometer o crime, porém ao chegar no apartamento da penhorista ele hesita. É somente depois de outros eventos que ele se compele a dar cabo dos seus planos. Já Nina em momento algum tem essa racionalização de porque ela deveria matar a Dona Eulália. O ato surge na impulsividade, depois que vemos diversos abusos morais nos quais a senhora sujeita a jovem.
O tempo todo Dona Eulália se impõe sobre Nina através de comentários mordazes ou a proibindo de pegar qualquer comida que ela não tenha pago. Numa certa ocasião, a velha chega até abrir uma carta da mãe de Nina e pega o dinheiro que ela enviou para filha. Nos fica bem claro que a perversidade de Dona Eulália não é apenas por uma questão monetária, ela parece sentir prazer em ser cruel com a jovem artista. Isso serve como o principal motor que desequilibra o estado emocional de Nina e vai minando o seu psicológico. É então que ela passa a ter consecutivas fantasias onde mata Dona Eulália.
Nina nunca tenta justificar para si que a morte de Dona Eulália é necessária segundo uma tese torta como a de Raskólnikov. O assassinato é fruto do seu desespero, da irracionalidade, de uma explosão de raiva de alguém que não consegue mais suportar tantos tormentos. É aqui que eu acho que a fotografia e a edição fazem um ótimo trabalho para a história que o filme quer contar. O sofrimento de Nina é mais impactante pelos visuais construídos com imagens surrealistas, ângulos tortos e uma iluminação lúgubre. Tudo nos faz sentir presos nos mesmo pesadelos que atormentam a personagem até mesmo quando ela está acordada.
Só que há um porém. Ao mesmo tempo que Nina tem suas diferenças com Crime e Castigo, o filme ainda se mostra muito dependente do livro. Não é à toa que nesse texto todo eu fiquei mencionando o original. Não dá para defender que são apenas referências quando elas acontecem com tanta frequência ao longo do filme todo. Sem o contexto e desenvolvimento apropriado, essas cenas acabam deixando o roteiro mais confuso e não de uma forma que agregue a experiência de um thriller psicológico que Nina acaba se tornando.
Por exemplo, o diálogo que eu citei lá atrás. Ele só fez sentido para mim pelo fato de eu ter lido Crime e Castigo e ainda estar familiarizado com seus tempos. Porque em Nina parece mais uma interação jogada ali na introdução que não nos leva a lugar algum. E que de fato não leva. Durante o resto da história não vemos qualquer indicação que Nina faz essa distinção sobre as pessoas. Até tem certas passagens que notamos uma arrogância e um sentimento de superioridade nela. Entretanto, parece mais uma consequência da frustração de uma artista que não consegue ser reconhecida pelo seu trabalho do que alguém que se sente acima dos demais.
O personagem do Matheus Nachtergaele é outra evidência dessa falha do roteiro de Nina. Em Crime e Castigo, esse personagem do pintor tem uma papel importante na trama porque ele vira o principal suspeito pelo assassinato. Isso serve para alimentar ainda mais o sentimento de culpa e o sofrimento que o rapaz sente por conta dos seus atos. Já em Nina ele é reduzido a um mero figurante que não serve a propósito algum a não ser te fazer lembrar do livro. São nessas horas que o filme se apequena, querendo se importar mais com a referência do que a estrutura da sua própria versão daquela história.
Apesar dessas ressalvas, ainda considero Nina um ótimo filme. A atuação da Guta Stresser e a cinematografia conseguem criar uma experiência muito mais visceral do tormento vivido pelo Raskólnikov. Mas não dá para negar que esta releitura ainda se coloca muito à sombra do original, então talvez ela funcione até melhor se você não tiver conhecimento prévio de Crime e Castigo. No mais, deem uma oportunidade para o cinema nacional, ainda mais fora desse eixo das comédias e dramas.
Um passarinho me contou que o filme está no YouTube.
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