Depois de tantos anos eu ainda me vejo voltando àquela manhã.

Eu deveria ter o quê? Dez, onze anos. A data exata eu nunca lembro, só o dia mesmo que eu o conheci durante as férias de fim de ano. Naqueles dias eu sempre acordava tarde e por tarde eu quero dizer oito horas da manhã. Para um garoto que sempre estudou de manhã aquilo parecia uma conquista e tanto. Bati meu recorde pessoal naquele dia e me levantei às 8:30 assustadoramente em ponto. Não foi um acordar normal porque havia um som estranho entrando sem pedir licença pela minha janela.

Meu quarto ficava no segundo andar de uma casinha que se espremia entre outras duas casonas. Ela dava de frente para a pracinha circular da nossa rua. Lá tinha mais banquinhos do que brinquedos já que no bairro havia mais adultos do que crianças. Bem no centro da pracinha ficava um quiosque que só abria de noite. Enfiei minha cabeça pela janela caçando a origem daquele barulho e me deparei com um homem sentado em cima de uma das mesinhas tocando violão. Assustado, me escondi atrás da parede porque me pareceu que aquele homem olhava diretamente para a minha casa.

Depois de uns segundos de hesitação, me reaproximei com cuidado da janela e espiei a praça de novo. Embora o homem estivesse virado no que eu achava ser a direção do meu quarto, os olhos deles não fitavam outro lugar a não ser o chão como se ali tivesse um partitura que só ele conseguisse enxergar. Devo ter ficado uns cinco minutos parados observando ele tirar notas de uma música que eu desconhecia.

Era uma cena bem estranha. Não era a primeira vez que eu via um músico ali, só que geralmente eles traziam um banquinho, microfone e deixavam a mochila do violão para quem quisesse dar dinheiro pra eles. E eles olhavam para frente!

A curiosidade acabou se transformando em monotonia então eu desci para tomar café. A música daquele homem pareceu me seguir pela escada e foi parar apenas quando cheguei na sala, interrompida pela voz do apresentador do jornal matutino que meu pai assistia. Dei um bom dia que ficou parado no ar e fui para cozinha comer algo. Minha mãe já tinha saído para trabalhar, mas ela deixou um pedaço de bolo de laranja separado para mim guardado por um nobre paninho que o protegia das moscas.

Quando eu estava terminando, o volume da televisão abaixou, houve uma pausa seguida de um grunhindo. Meu pai entrou na cozinha e me devolveu o bom dia que tinha ficado na sala.

– Tem um homem estranho tocando violão na pracinha.

– Essa gente é tudo vagabunda…

Conversas com meu pai não costumavam ir muito além das duas linhas. Às vezes eu adicionava uma terceira via pensamento. Lavei meu prato e voltei para sala. A melodia me aguardava paciente nas escadas e subimos juntos. Chegando no meu quarto ela ficou rodando pelo teto como um ventilador feito de música.

Horas se passaram e eu podia jurar que o homem não parou de tocar nem por um segundo. De vez em quando eu olhava pela janela e lá estava ele no mesmo lugar olhando para o mesmo ponto. A diferença é que agora passavam pessoas pela pracinha então o músico foi juntando uma pequena plateia. Porém ele em momento algum tirou os olhos do chão. A única vez que ele fez algo diferente foi quando um senhorzinho puxou um maço de notas e se aproximou da mesa. O músico ergueu os dedos de uma das mãos e balançou a cabeça. O senhor deu de ombros, enfiou o dinheiro dentro do bolso e foi seguir sua vida.

Aos poucos a plateia foi se dispersando, acho que ofendida pelo homem não retribuir a sua atenção. Era essa detalhe peculiar que atiçava minha curiosidade.

Tentei me distrair no computador, porém volta e meia eu retornava para assistir pela enésima vez aquela mesma cena. Então, de repente, tudo ficou em silêncio. Corri tão rápido para janela que se ela não fosse alta o suficiente eu teria parado do outro lado.

O homem continuava na praça.

O violão agora repousava cansado na mesa e o músico tinha dado as costas para as casas. Movido por uma vontade misteriosa, eu corri para as escadas. Primeiro bem veloz, mas depois calma para ver antes se meu pai não estava na sala. Nenhum sinal dele. Resolvi não chamá-lo porque senão ele talvez não me deixasse sair. Fui até a cozinha de novo, enchi uma jarra de água e peguei um copo. Girei a maçaneta da porta da frente com cuidado, vigiando as costas com medo de encontrar os olhos do meu pai gritando um “aonde você pensa que vai?”.

O portão da frente estava destrancado. Minha mãe sempre esquecia de fechar quando saía. Atravessei a rua olhando para os três lados: para a direita, para a esquerda e para trás uma última vez. Percebi que estava descalço, mas agora era tarde demais para eu arriscar uma volta até a casa. Eu já tinha atravessado metade da calçada e estava a uma amarelinha de distância do homem.

Acho que meus pés, mesmos descalços, eram muito barulhentos porque ele virou o rosto naquele momento. Fiquei imóvel. O homem, que não era tão homem assim porque estava mais próximo do meu irmão, que era uma meia-vida mais velho do que eu, do que o nosso pai. Ele olhou para mim, depois para jarra e disse uma única palavra.

– Ah, muito obrigado!

Meus pés encontraram uma forma de se mover e eu cheguei enfim até o homem que agora era um rapaz. Estendi os braços para frente, ele tirou a jarra das minhas mãos e encheu um copo completo que tomou tudo num gole só. Ele deixou a jarra e o copo na mesa e balançou um pacotinho de batata chips na frente do meu rosto perguntando seu eu aceitava. Já tinha desobedecido praticamente todas as regras que meu pai me vez memorizar, então não tinha problema desobedecer mais uma.

Tinha só um pouco então ele me deu o pacote. Enquanto eu terminava as batatinhas ele colocou o violão de novo no colo e mexeu naquelas pecinhas do braço que o nome até hoje eu não sei.

– Sabe tocar? – respondi que não – Eu aprendi mais ou menos com sua idade. Meu pai é professor de música.

– O meu é um saco!

O rapaz deu uma risada. Sem fazer cerimônia, ele voltou a dedilhar as cordas do violão com o olhar para baixo. Eu não queria interrompê-lo, mas a minha curiosidade me venceu como de costume:

– Moço? – ele parou de tocar e me encarou – Para quem o senhor está tocando?

Ele deu um daqueles sorriso sem dentes como se a minha pergunta fosse muito óbvia.

– Ora, para quem quiser ouvir!


Nesse meu aniversário resolvi tirar reflexões não sobre a vida mas sim sobre para quem eu escrevo
Prometo que essa segunda parte será rápida

Das várias formas excêntricas que eu já escolhi para iniciar um artigo, essa com certeza leva o prêmio se houver algum. A cena que narrei acima é 100% fictícia e não se baseia em nenhuma experiência de vida que eu tive. Não é nem mesmo uma ideia que tive para usar em algum livro. Ela surgiu na minha cabeça como uma resposta a um questionamento corriqueiro que dá título ao texto: para quem eu escrevo?

Essa é uma pergunta que me faço há um bom tempo. Coisa de um ano para cá, mais ou menos, quando eu percebi que eu não sou bom para criar conteúdo para internet. Ok, não existe necessidade para uma síndrome de impostor aqui porque eu até que gosto bastante dos meus textos. O que percebi foi que não sou bom para criar conteúdo “que dê certo”. Dá para interpretar isso em duas vertentes. O conteúdo que “dá certo” pode ser tanto aquele gere renda quanto também aquele que alcança pessoas. Embora não sejam mutualmente exclusivas, é a intenção de quem cria o tal conteúdo que muda a perspectiva.

O Backlogger não me dá dinheiro, só gastos. Esse ano eu vou ter que desprender algumas centenas, talvez até mesmo um milhar, de reais para manter meu blog de pé. Vocês podem ver que eu tenho um ad sense ativado aqui, contudo até hoje ele me gerou menos de cinco dólares. O Google só permite você sacar quando chega num mínimo de cem dólares, logo não existe qualquer lucro nesse site. Felizmente isso não é tanto um problema assim porque eu sigo encarando o blog como hobby. Porém eu estaria mentindo se dissesse que não gostaria de ganhar dinheiro com ele.

Logo, no meu caso, o “dar certo” significa a capacidade de fazer que esses textos cheguem a leitores interessados e é aí que entra o questionamento sobre para quem eu escrevo.

Algo que todo mundo que me acompanha, seja aqui pelo blog – ou lá pelo Twitter onde sou mais ativo – já notou que não há muita constância na forma que falo sobre mídias. Uma hora eu me meto a recomendar mangás. Depois eu passo para jogar uma penca de beat’em ups de OpenBOR. Daí eu invento de viajar por quase cem anos de cinema swashbuckler. E então me meto a falar de uma treta do momento juntando um monte de jogo no mesmo balaio. Isso é uma consequência de como eu sou na vida real, porque há poucas semanas eu do nada comecei a assistir filmes de monstros gigantes da década de 50. Ainda não tem um texto sobre isso. Ainda!

Isso me gera um problema, pois eu não consigo ter um público-alvo e muito menos um público fixo. Eu já abordei isso quando o Backlogger completou um ano de existência falando sobre o texto do Raluca que eu escrevi ano passado. Ele segue como o texto mais lido desse blog e quem chegou aqui por ele provavelmente foi embora logo em seguida. Porque, por mais que eu cubra alguns dramas da internet, não é o foco do meu conteúdo e qualquer canal de opinião atende essa demanda bem melhor do que eu.

Da mesma forma, quem chega aqui por um texto de vídeo game, que era para ser a pauta principal do site, também não vai ficar muito tempo. Porque um dia eu vou falar de um jogo indie como Dodgeball Academia e semanas depois eu mudo para uma animação como The First Slam Dunk. Quem encontra o Backlogger por causa de um conteúdo específico não tem muito incentivo para me acompanhar porque eu não tenho uma “linha editorial” igualmente específica aqui.

Eu tenho plena certeza que isso jamais vai mudar!

Melhor ainda: eu não quero que mude. Sim, ter um blog reconhecido e visitado com regularidade seria maravilhoso para um recém-desempregado como eu. Sério, alguém me dá um emprego. Mas, ao mesmo tempo, eu aprecio demais a liberdade criativa que tenho no Backlogger. Gosto de não ter que seguir nenhum roteiro específico e simplesmente falar daquilo que mais me interessa no momento. Sinto até que isso resgata a sensação daqueles blogs mais antigos do início da internet no Brasil onde estávamos mais compartilhando experiências do que de fato criando conteúdo para internet.

Outra coisa que me agrada é a qualidade terapêutica que o blog tem na minha vida. Eu sou filho único (mais ou menos, é uma história complexa e pessoal demais para explicar aqui) e sempre fui um tímido inveterado. Meus interesses sempre divergiram mais do que interseccionaram com os amigos que eu cresci, portanto eu tinha muita dificuldade de encontrar um espaço e gente para falar de algumas coisas da minha cabeça. Ainda mais com essa minha mania de ficar pulando pra mídias diferentes de semana em semana. Por isso eu acabei me acostumando a ter discussões comigo mesmo sobre o que eu estivesse consumindo no momento.

Assim o blog virou uma extensão desse hábito e por um tempo eu passei a acreditar que estava escrevendo para mim mesmo. Até certo ponto isso é real, porque os textos me ajudam a refletir sobre as minhas impressões. Atualmente eu mudei a minha mentalidade e percebi que gosto de ser ouvido, ou melhor, lido. Mas se botarem um microfone na minha frente e pedirem para eu falar de jogos de terror eu também faço com muito prazer. Essa foi uma indireta feita para uma pessoa em particular entre vocês.

Meses atrás eu recebi um novo comentário no meu texto sobre o tempo em The Friends of Ringo Ishikawa, algo que me deixou imensamente feliz. Primeiro, óbvio, porque a pessoa gostou do que eu escrevi. Segundo, porque esse é um dos meus artigos favoritos. E terceiro, segundo porque já tinha um bom tempo que eu havia lançado ele aqui no blog e não esperava mais que ele receberia alguma atenção. Mas saber que aquele texto conseguiu chegar em alguém, mesmo que seja uma única pessoa, e agradá-lo tanto me deu uma grande satisfação. É esse o efeito que eu espero atingir com o conteúdo dos meus textos.

Então para responder o questionamento que eu fiz para mim mesmo, eu não preciso mais me preocupar em ter um público-alvo. Hoje eu entendo que escrevo para quem quiser ler!


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