Dois detalhe essenciais sobre a minha pessoa que vocês precisam saber: eu adoro animações e eu demoro muito para assistir as coisas. É por isso que, mesmo com todas as recomendações que me fizeram, eu levei um bom tempo para ir assistir Arcane. Acho que levei quase que um ano depois do seu o lançamento. É também por esso motivo que eu ainda não conferi Cyberpunk 2077: Edgerunners (e nem devo conferir já que não tenho nenhum interesse particular nesse universo). Algo que deveria ser similar ao caso de Arcane já que eu decidi me divorciar de League of Legends há quase uma década. Mas não foi aquele divórcio legal que ele pode vir ver as crianças quando quiser, foi divórcio no nível de se aparecer na minha rua eu ligo pra polícia!
…
Analogias estapafúrdias a parte, o fato é que eu tinha quase cortado todas minhas relações com League of Legends. As únicas exceções eram aqueles curtas de Tales of Runeterra que eu ainda gostava de assistir de vez em quando.
O motivo pelo meu interesse nesses custas é que eles me mostravam um potencial de League of Legends que até então exploraram pouco. Sempre senti que o jogo podia ir muito além dos e-sports para alcançar um público maior e que não está a fim de ouvir um adolescente estourando as hemorroidas porque você não usou a ult a tempo e vai ficar reclamando durante todo o tempo que leva para o avatar ele dar respawn.
Se você não entendeu a última frase você não faz ideia de quanto te invejo!
Pois bem, tempo atrás eu finalmente decidi para pegar pra assistir Arcane. Agora posso afirmar que essa série é exatamente aquilo que eu desejava a muito tempo que acontecesse. Não em relação as animações, mas sim para as adaptações de jogos. Pelo menos para esse lado do planeta, já que o Japão tem um grande histórico de ótimas animações de jogos. Filme live action também. Tivemos experiências positivas nesses últimos anos, não nego. Só que pra mim faltava um consenso ainda. Os filmes do Sonic, por exemplo, é bem discutível se eles são bons ou não. Eu particularmente gostei (com ressalvas) de Detetive Pikachu, porém é outro que também vai ter muitas pessoas questionando se qualifica como uma boa adaptação.
Aí que entra Arcane. Ela destaca por ser uma série muito elogiada por vários grupos: jogadores de LoL, a crítica, fãs de animação, etc. A considero especial por questões de qualidade – que de fato ela tem – e sim porque ela conseguiu agradar muita gente. Muito mesmo. Então, com alguns meses de atraso, resolvi explicar porque considero Arcane um novo marco para a história das séries e filmes de jogos. Além disso, como a série acaba de ganhar o prêmio de Melhor Adaptação no The Game Awards não tem um momento melhor para se discutir esse tópico.
DANDO UTILIDADE A UM LORE VIRGEM
Comecei a jogar League of Legends no Ensino Médio por causa de um amigo lá na longínqua década de 2010. Todo mundo faz merda na adolescência, né? Naquele período eu estava ciente que havia todo um universo criado para dar um contexto ao jogo, onde cada personagem tinha uma origem e que por vezes cruzava com a de outros personagens. Porém eu nunca me dava o trabalho de ler mais do que a descrição das magias dos personagens e ignorava por completo as suas biografias. Tudo porque no final do dia a gameplay de League of Legends se resumia a isso:
A história de Demacia ou porque o Warwick ou o Dr. Mundo ficaram daquele jeito pouco me importava e duvido que a vasta parcela dos jogadores de League of Legend também. Afinal, a experiência de jogo é de uma natureza muito mais competitiva do que narrativa, então não existe incentivo para mergulhar nessas história. Sendo assim nomes como Demacia, Piltover, Iona, Bilgewater não faziam a menor diferença para mim. Elas não melhoravam a experiência que eu tinha com cada partida que eu jogava e provavelmente eu as esqueceria antes mesmo de chegar na minha lane.
Pior que nem mesmo para o próprio desenvolvimento do jogo essa parte mais textual era tocada com muita consideração. No começo de League of Legends eram os próprios designers quem escreviam a biografia dos personagens. Ele não tinham muito compromisso em fazer algo descritivo e tão bem pensado assim, era só preencher lacunas. Então a primeira coisa que Arcane faz é pegar todo esse lore, que servia apenas para dar um pouco de personalidade ao jogo, e pô-lo a um bom uso. Agora Piltover não é apenas um nome de um lugar de onde alguns dos personagens que você podia selecionar. É uma cidade, um pequeno universo, com suas classes (e problemas) sociais, uma cultura e um passado próprio. Você consegue não apenas visualizar, mas como também entender como aquela sociedade se organiza.
Isso se estende até os próprios personagens cujas relações interpessoais e origens ganham muito mais sentido do que nas descrições do jogo. Com Arcane podemos ver a personalidades deles se aflorar além de um conjunto de habilidades e frases de efeito. Não que não houvesse alguma personalidade nos personagens originais do jogo, afinal esse é o trabalho de bons character designers. Porém a série consegue engrandecê-los com mais texto. Ela adiciona sonhos, ideais e fraquezas de caráter que nos fazem ter uma conexão mais forte com tais figuras além dos atributos e poderzinhos.
E já que estamos falando dos personagens:
UM ELENCO BEM DEFINIDO
Naquele longuíssimo texto meu sobre Fatal Frame: The Movie, quando estou falando sobre Resident Evil: Bem-Vindo a Raccoon City, eu menciono algo que me irrita profundamente nas adaptações de jogos: a quantidade desenfreada de referências vazias que inserem no roteiro pra tentar agradar fãs. Um desses sintomas mais perceptíveis são personagens inseridos na história que não dão uma real contribuição a ela, porém você “precisa” colocá-los já que eles são parte do jogo. O último filme de Resident Evil junta dois jogos em um só para ter mais gente do jogo para mostrar.
League of Legends tem um verdadeiro panteão de personagens. Hoje conta com mais de 160 campeões diferentes, se é que chequei a informação correta. Na época que produziram Arcane deveria haver algumas dezenas a menos e mesmo assim ainda é muita gente. Para um jogo de battle arena um elenco tão titânico faz sentido, para um filme e uma série não. Até mesmo em histórias biográficas os roteiristas aglutinam várias pessoas num único personagem para tornar a narrativa viável.
Logo, uma seleção seria muito necessária em Arcane. Até imagino que em algum ponto no meio da produção houve a tentação de se adicionar mais personagens para chamar atenção dos fãs. Felizmente a série teve a sensatez de se segurar. Os roteiristas escolherem personagens pontuais que pudessem de fato contribuir para a história que estava, a fim de contar nessa temporada. Pode até ter uma referência aqui e outra acolá, mas nada que tire o foco do elenco principal.
Ao escolherem uma abordagem mais conservadora no casting, usando personagens como Vi, Caitlyn, Heimerdinger, Ekko, Jynx, entre outros; os roteiristas puderam desenvolver melhor essa história. Imagina a bagunça que seria se tivessem que enfiar Teemo, Mordekaiser, Garen, Ashe, Mestre Yi, entre outros, nesse meio também? Com um elenco reduzido, a série cria bastante espaço para se dedicar a cada um dos campeões selecionados e garantir haja um bom desenvolvimento para cada. Porque desenvolvimento não exige apenas boa escrita, também é necessário tempo.
E isso não se aplica somente aos personagens que vem diretamente do lore de League of Legends. Os personagens originais brilham tanto quanto o elenco do jogo. Silco, por exemplo, foi um vilão tão bem construído e com tanta presença em Arcane que você poderia facilmente pensar que ele é um dos personagens mais famosos do jogo. Porém não, ele é um 100% criado para essa série. O que configura outro mérito louvável de Arcane que é não ter medo de criar em cima do que já existe. Todo o elenco de apoio – como Vander, Grayson, Mel, Mylo, Claggor, Sevika – tem seu devido espaço nessa história, dando contribuições significativas em maior e menor grau para os arcos dos personagens principais.
Há uma observação cínica que se pode fazer aqui dizendo que muitos desses personagens estão ali pros roteiristas não precisarem tomar riscos. Porque realmente quando chega a hora de matar alguém, isso acaba caindo para um dos personagens originais. Contudo eu chamaria isso de uma observação burra. Todas essas perdas são sentidas pela audiência pois podemos ver o impacto que causam nos outros personagens. Muitas dessas mortes acabam servindo de motor para iniciar alguns de seus arcos, como no caso da Jinx e da Vi. E já que estamos falando de arcos:
PEQUENOS ARCOS, GRANDES HISTÓRIAS
Entregando um pouco a idade, um desenho popular durante a minha pré-adolescência foi o da Liga da Justiça. Uma das coisas que eu sempre gostei dessa série é como que nas primeiras temporadas, antes de virar Liga da Justiça: Sem Limites, é que as histórias se dividiam entre 2 ou 3 episódios. Isso dava mais tempo para os roteiristas trabalharem melhor o conflito da trama. O primeiro episódio costumava terminar num cliffhanger que dava mais espaço para essas linhas narrativas respiraram um pouco. E claro que também servia para te deixar muito ansioso para ver o seguinte.
Arcane faz algo parecido. São 9 episódios, organizados em três atos diferentes e que dão a sensação de assistir trilogia de filmes lançados em sequência. Para mim essa divisão teve um importante efeito narrativo ao manter os roteiristas focados naquilo que era mais importante para o momento. Como cada personagem tem sua linha narrativa própria, que eventualmente se conectam uma as outras, a estrutura de atos em 3 episódios estabelece marcos nos quais a história precisa alcançar para dar continuidade. Assim temos uma construção perfeita do conflito que caminha junto do ritmo desses personagens.
Outra beleza do roteiro bem estruturado de Arcane é que ele nos dá tempo de conhecer esse universo antes que a trama pegue tração de fato. Mas ao mesmo tempo, por estar dividido nos três atos, a gente tem a sensação logo de início que a história está movendo no passo acertado e que cada episódio contribui para o quadro geral da série.
Nisso, o arco entre as irmãs Vi e Jinx desempenha um importante papel de ser a âncora emocional da série que segura a história do começo ao fim. Por mais que diferentes histórias estejam sendo contadas em paralelo, é a relação das irmãs e a sua eventual separação que mantém um ponto focal para a trama onde a audiência pode ficar emocionalmente investida.
E retornando ao tópico anterior sobre a quantidade de personagens escolhidos, manter a história dentro dos limites de Piltover foi outra decisão acertada. A todo momento somos lembrados que existe um mundo maior a ser explorado nesse universo, porém a série não tem pressa alguma em sair das fronteiras da cidade. Isso dá margem para que diferentes histórias possam ser contadas em outras temporadas ou até mesmo novas séries. Não tenho a menor dúvida que nos próximos anos teremos algum spin-off anunciado para que a audiência possa visitar outras partes desse universo sem interferir com a trama de Arcane.
Essa pode ser apenas uma pequena história do mundo de League of Legends, mas é grandiosa no seu espetáculo na medida que precisa ser, dando um show de roteiro e de animação. E já que estamos falando de animação:
UMA ANIMAÇÃO COM PERSONALIDADE
Eu poderia escrever um ou dois parágrafos para falar da animação de Arcane. Mas acho que essa cena de pouco mais de 2 minutos entre o Ekko e a Jinx fala por si só. Se qualifica como spoiler, então quem der play está assumindo o risco.
Ok, vou talvez dê para escrever uns parágrafos rápidos!
E eu escolhi essa sequência em particular porque além de exemplificar esse poder da animação na estética, ela também fortalece o poder narrativo da série somando o esforço dos roteiristas com os animadores. Em menos de 3 minutos você tem uma cena de ação rápida e marcante, ao mesmo tempo que consegue entender como era a relação entre esses dois personagens e como ela foi alterada nesses anos. São poucos minutos, mas uma história efetiva é contada ali através de uma sequência maravilhosamente bem conduzida com o poder da animação.
Eu não vou comentar sobre as escolhas na trilha sonora porque não sou particularmente chegado a usar músicas contemporâneas em cenários de fantasia. Fora que por conta de Sweet Home eu não consigo levar Imagine Dragons com seriedade. Mas sobre a animação há muito do que se falar, em sua maioria elogios.
Fortiche Production SAS é um estúdio francês que trabalha muito com publicidade e também na produção de videoclipes. O estúdio já colabora com a Riot Games há algum tempo com alguns trailers como os de Get Jinxed e Ekko Seconds. O que me chamou atenção logo de cara foi a animação do estúdio que não era o que eu estava habituado a ver nas séries animadas ocidentais. Não vou ousar chamar de único porque certamente existem outras obras com um estilo similar que eu apenas desconheço, mas acho seguro dizer que para muitas pessoas foi uma experiência singular e cheia de personalidade.
E o que eu mais gosto na animação da Arcane é que ela não é homogênea na sua totalidade. Há várias sequências como a já mostrada acima, em que animação incorpora novos elementos que são usados para representar o estado mental e os sentimentos dos personagens naquele instante. Grande exemplo é quando a Jinx está passando por um dos seus surtos, onde a tela é recheada de rabiscos que representam todo o trauma e confusão mental que a afligem.
Incorporar esses elementos de forma bem dosada, mostra que a série não está utilizando a animação apenas como uma gimmick chamativa que consiga ter mais apelo com o público dos jogos. Ela tira proveito de todo o poder que a animação concede como uma forma de expressão artística que pode evocar uma gama de sentimentos através desses elementos visuais.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Com Arcane eu acredito que estamos entrando numa nova era das adaptações de jogos que tem tudo para ser muito boa. No cinema é algo que eu ainda não estou muito satisfeito, mas certamente nas séries animadas o potencial tem se mostrado há décadas, estando ainda mais forte nesses últimos anos. Tivemos a série de Castlevania há um tempo atrás, passamos por Arcane e ainda esse ano tivemos o Cyberpunk 2077: Edgerunners.
Tem que dar os devidos créditos ao universo que tinha sido previamente criado pela Riot Games, embora que seu potencial não tivesse sido plenamente explorado. Contudo, Arcane também consegue ser uma série que se sustenta características próprias. Animada com excelência numa direção artística com muita personalidade, que conta com um ótimo trabalho de dublagem também, e um roteiro que consegue apresentar um novo mundo e trabalhar todos seus personagens ao mesmo tempo que constrói uma trama sólida que te deixa ansioso pelo que o futuro reserva.
Que venha uma segunda temporada logo! Finalmente deram uma data para segunda temporada de Arcane!
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