Como gamers mentem para você: Baldur’s Gate 3 e a “lacração de Schrödinger”

Lacração, cultura woke e talvez os mais velhos se lembrem da agenda do politicamente correto. Todos são termos repetidos à exaustão e como todo termo repetido à exaustão já não possuem qualquer significado. Nem mesmo para as pessoas que seguem utilizando-os, dada a tremenda flexibilidade com que QUALQUER COISA vira lacração. Basta você ser generalista (e paranoico) o suficiente. Essa é uma discussão que já se espalhou para todos os nichos da cultura pop e os vídeo games não são qualquer exceção. Porém, curiosamente teve um jogo que não recebeu a alcunha woke: Baldur’s Gate 3. Hmm, por que será?

Já tem um tempo que eu tenho essa impressão que a gente não consegue ter um lançamento tranquilo nessa comunidade. Porque sempre aquela mesma turba de gamers reacionários começa uma histeria porque o joguinho adicionou algo que os deixaram chateadinhos. Pode ser uma minoria que eles vão jurar de pé junto que não tem preconceito, só não gostam da tal da “representatividade forçada”. Pode ser o design de uma personagem que eles acreditam que foi feito para agradar as feministas metafóricas. É uma suposta ideologia que eles não sabem definir direito, mas tem certeza que está sendo empurrada no jogo. Os caras conseguem até ser bastante criativos nas formas de enxergar a “lacração no mundo dos games”.

A parte ingrata dessa história é que a lacração de fato existe. Não falo nem lá das suas origens quando ela era apenas uma gíria de grupos LGBT+ que descrevia uma situação na qual alguém se destacou pela sua excelência, fosse numa resposta ou numa performance. A lacração como uma tentativa descarada de chamar atenção para si através de pautas sérias, fazendo críticas sociais constrangedoras e sem qualquer tato ou efetividade também sempre esteve ali presente. É só lembrarmos de clássicos como “Poxa nenhuma negra…”, o comercial do Black Lives Matter da Pepsi ou tudo que o PSOL e o MBL fazem na internet. A lacração nunca foi de exclusividade de uma pessoa, de um CNPJ ou de um grupo político.

Dá até para concordar até certo ponto que a cultura woke existe se você a interpreta do ponto de vista mercadológico. Porque as empresas SEMPRE tentaram conquistar novos nichos seguindo as tendências atuais. O problema é que quando essa galera fala de cultura woke é sempre numa perspectiva conspiratória, então fica muito difícil levá-los a sério como eles próprios se levam. Vou falar de um exemplo que eu adoro relembrar: Super Mario Bros. – O Filme.

No primeiro trailer tinha uma cena de poucos segundos em que dava para ver Princesa Peach com um traje de batalha segurando uma alabarda. Tem algo de mais nisso? Se você é uma pessoa minimamente normal, não! Mas para alguns marmanjos aquilo foi a prova que o filme era woke, pois aquela era uma tentativa de apelar para as feministas, transformando a Peach numa heroína e o Mario – esse bastião da masculinidade dos games – num palerma. Tem outra forma de chamar isso que não seja pura paranoia? O mais engraçado é que quando o filme saiu e toda essa teoria… entrou pelo cano, essa mesma galera inverteu o discurso. Super Mario Bros. – O Filme deixou de ser woke e na verdade era anti-woke. Por que anti-woke? Nessa hora eu parei de tentar entender.

Cena de Super Mario Bros. - O Filme. Princesa Peach veste um traje de batalha rosa e se arma como uma alabarda, acompanhada do seu escudeiro Toad. Os dois descem pelo corredor do castelo

O que eu gosto desse caso é porque ele ilustra muito bem como narrativa sobre cultura woke e lacração funcionam. Além de flexível, o discurso muda conforme seja mais conveniente. Daí que eu tirei essa ideia de “lacração de Schrödinger”, algo similar ao idiota de Schrödinger, e não existe um exemplo mais perfeito do que Baldur’s Gate 3. Mas antes vamos recapitular alguns lançamentos recentes que acabaram envolvidos na conspiração da cultura woke.

Vamos começar com um óbvio, Dragon Age: The Veilguard. Durante o seu lançamento, teve todo aquele fuzuê por conta das cenas em que uma personagem explicava que era não-binária e a outra que um personagem é punido a fazer algumas flexões porque errou o gênero. Mais ou menos nessa época, não lembro se antes ou depois, teve o bafafá de Assassin’s Creed Shadows e um dos seus protagonistas, Yasuke. Muitos gamers ficaram incomodadíssimos – por que será? – pelo fato de, ó meu Deus, ter um samurai preto no Japão. Até mesmo depois que foi mostrado que ele era inspirado numa figura histórica real e que já foi representada em diversas obras.

Mais recentemente rolou uma pendenga com Avowed. Motivo? FUCKING PRONOUNS! FUCKING GENDER AMBIGUITY!!! Foi mal, mas eu racho demais com aquele vídeo. Enfim, os gamers ficaram pilhados porque o jogo tinha pronome neutros e nessas horas todo mundo passa a se importar com a norma da língua portuguesa. Outra algazarra que chega a ser engraçada foi a com Kingdom Come: Deliverance 2. Apesar do diretor do jogo ser bem camarada com esse lado mais reaça da comunidade gamer, o jogo deixou esse pessoal desgostoso ao saberem que havia a OPÇÃO de ter um relacionamento gay. Por fim, já se organiza um arranca-rabo com o futuro jogo de Intergalatic porque o jogo terá como protagonista uma… mulher careca!

Se você está familiarizado com todas essas discussões sobre lacração, é fácil entender os exemplos que eu citei. Intergalatic, por outro lado, precisa de um pouco mais de esforço. Nem tanto porque é praticamente o mesmo raciocínio que fizeram no filme do Mario. Não é simplesmente que o design da protagonista desagradou os jogadores porque acharam feio. É porque eles acreditam que isso é outra demonstração de um suposto “embarangamento” de personagens femininas no Ocidente para, de novo, agradar as feministas.

*sigh* Tá cada vez mais difícil escrever
esse texto sem partir para a ignorância.

Se a gente pega esses exemplos e olha para Baldur’s Gate 3 é seguro imaginar que esse seria mais outro jogo seria imediatamente chamado de woke. Basta lembrar que um dos vídeos que viralizou nas redes sociais durante o seu lançamento era um cena de sexo entre o personagem do jogador e um outro personagem que podia se transformar em urso. Então como é que o jogo escapou desse discurso?

Ora, na verdade ele não escapou. Durante o período de desenvolvimento de Baldur’s Gate 3 não faltavam comentários sobre como esse seria ou poderia ser um jogo woke. Buscando algumas postagens mais antigas na aba de comunidade da Steam encontrei algumas dessas ocorrências:

Alguns comentários publicados na comunidade de Baldur's Gate 3 da Steam falando sobre se o jogo seria ou não woke

O jogo então foi lançado e, como num passe de mágica, essa turma baixou a bola. Pode até ter um doido aqui e outro acolá que considera Baldur’s Gate 3 uma lacração interminável, mas é nítido como não teve o mesmo escândalo que outros jogos costumam ter. Alguns tentarão justificar dizendo que é porque o jogo é de fato bom. Tá, mas Avowed e Assassin’s Creed Shadows também tiveram uma recepção positiva e ainda assim foram chamados de woke. Outros podem dizer que é porque o jogo não força nenhuma das suas “pautas”. Tá, mas o romance gay em Kingdom Come: Deliverance 2 é opcional e mesmo assim é visto como lacração.

Enfim, para todo argumento você consegue apontar um contra exemplo que mostra como essa galera é bem adepta da política de dois pesos e duas medidas. Mas a verdade de porque Baldur’s Gate 3 não ser chamado de woke aos quatro ventos é bem mais simples. É tudo porque o jogo teve 500 mil jogadores simultâneos no dia do seu lançamento!

No meu primeiro artigo de “Como gamers mentem para você”, eu falei sobre como o número de jogadores simultâneos da Steam hoje é a principal arma da guerra cultural contra a “lacração no mundo dos games”. Menos de uma semana do lançamento de Avowed e já tinha gamer balançando gráficos de SteamCharts e SteamDB para mostrar que o jogo flopou.. Porque, como eu já falei outras vezes, eles PRECISAM que o jogo seja um fracasso.

A ideia de que existe uma cultura woke infestando a mídia dos vídeo games – e a indústria do entretenimento como um todo – é só uma parte da narrativa. Outra questão fundamental que esses gamers reacionários tentam convencer os mais desavisados é que a cultura woke está matando a indústria. Uma das formas seria dizer que jogos estão ficando piores, que é uma narrativa que de vez em quando aparece por aí. Todavia, qualidade é um aspecto muito subjetivo. Por outro lado, as vendas de um jogo tem mais materialidade. Por isso que ainda se repete o mantra do “go woke, go broke”, ou sua versão brasileira “quem lacra não lucra”. Portanto, se um jogo é chamado de woke ele tem que ser um fracasso também. O contrário também se aplica, pois se um jogo é um sucesso de vendas ele não pode conter lacração.

Isso fica ainda mais evidente quando a gente olha para dois outros jogos que também colocaram como sendo vítimas da cultura woke. Coincidentemente esses são dois dos maiores flops dessa geração, Concord e Suicide Squad: Kill the Justice League. Ninguém nega que esses dois jogos fracassaram. Concord contou com menos de 700 jogadores no dia do seu lançamento e em duas semanas mataram os servidores. Suicide Squad: Kill the Justice League vendeu tão mal que poucos meses depois do jogo sair já rolava promoções com 95% de desconto. Não existe espaço para dúvidas, os dois jogos foram desastrosos.

A imagem mostra a capa de dois jogos, Concord e Sucidade Squad: Kill the Justice League, destacando alguns personagens de cada jogo

Concord foi considerado woke por conta dos seus personagens que, segundo os mesmos gamers de sempre, foram desenhados para agradar o público progressista. Já com Suicide Squad: Kill the Justice League a gente tem que fazer aquele esforço de Intergalatic e Super Mario Bros. – O Filme. Ao viralizar uma cutscene em que a Harley Quinn matava o Batman, começou a pipocar um discurso que esse seria mais um jogo a promover uma narrativa pró-feminista. Mas além disso, ajudou também que a Sweet Baby Inc. se envolveu na produção do jogo, embora somente na escrita de alguns ads, logs e diálogos de alguns NPCs. Mas como a empresa é o bode expiatório favorito dos gamers nos últimos anos, já era o bastante.

Isso tudo já é o suficiente para essa galera “entender” porque esses jogos fracassaram então eles vão ignorar todos os outros fatores dessa equação.

Concord chegou muito tarde na corrida dos hero shooters e ainda tomou a estranha escolha de ser um jogo pago enquanto todos os seus principais concorrentes – Overwatch 2 e Valorant – seguem o modelo de free-to-play. O jogo não ofereceu qualquer diferencial significativo que fizesse valer o preço e atraísse o público já consolidado. Quem jogava Overwatch continuou jogando Overwatch, quem jogava Valorant continuou jogando Valorant e quem não jogava nenhum deles, ou qualquer outro título do gênero, não viu motivo para começar a fazê-lo.

Suicide Squad: Kill the Justice League já desagradou o público por ter elementos de live service. Para piorar, problemas nos servidores contribuíram no aumento da desconfiança. Além disso, a ideia de ter que matar a Liga da Justiça não soou bem para muitos fãs dos super-heróis. Quem acompanhou os meses que antecederam o lançamento de Suicide Squad: Kill the Justice League já imaginava a bomba que estava prestes a explodir.

Embora o sucesso ou o fracasso dos jogos dependa de vários fatores, para quem se convenceu que está numa guerra cultural a lacração é motivo o suficiente. Para alguns eu diria que é até o único motivo. Por causa disso eles se apegam a qualquer possibilidade de flop para fazer valer as suas visões de mundo. Mas quando o tiro sai pela culatra eles precisam mudar rapidamente a narrativa. Baldur’s Gate 3 se tornou um caso emblemático porque não havia como negar o sucesso do jogo. Até mesmo dentro das métricas que essa turma gosta de usar. No seu pico, Baldur’s Gate 3 teve mais de 800 mil jogadores simultâneos e ainda consegue manter uma média de 40-50 mil jogadores diários. Isso somente na Steam.

Já em outros casos em que o sucesso é tão ubíquo, os gamers optam pela tática de varrer para debaixo do tapete. Os primeiros dias de Avowed e Assassin’s Creed Shadows foi insuportável como todo lançamento da atualidade. O discurso de que iriam ser flops já estava engatilhado e durante um bom tempo mantiveram essa posição. Contudo, assim que começaram a sair notícias que ambos atingiram as expectativas das suas empresas, os gritos ficaram mais baixos. Agora nem se toca mais no nome deles.

Mas não se aflijam, meus caros gamers. Daqui uns anos sai Intergalatic e vocês podem fazer as suas apostas se o gato está ou não está morto.


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