Silent Hill é uma das minhas franquias favoritas de jogos de terror. Não é A favorita, mas está no Top 5. Apesar disso eu vale bem pouco de Silent Hill por aqui, sendo que o único texto que fiz da série foi sobre um mapa de Silent Hill 3. Pois bem, chegou a hora falar mais um pouco da franquia e para isso eu escolhi o título que eu mais gosto dela, o Silent Hill 2.
Com o remake lançado a um tempo vi que abriu uma oportunidade para falar da única versão que importa que é a original. Aqui é onde eu deveria falar “brincadeiras à parte”, mas não estou zoando. Eu não dou a mínima para o remake, nada que vi sobre ele antes e depois do lançamento me fez pensar que vale a pena dar uma chance e mantenho o que falei meses atrás. Acredito que o tema do artigo de hoje cabe para qualquer uma das duas versões, mas escrevi pensando no original.
Sendo curto e grosso: eu não gosto de finais múltiplos.
Não é algo tão forte igual minha repulsa por roguelikes, é apenas algo que eu não curto. Em muitos dos casos eu vejo que eles não acrescentam muita coisa na experiência, ainda mais quando são apenas pequenas variações de outros finais, que apenas adicionam um valor de replay meio forçado. Por isso o que costumo fazer é zerar o jogo e depois conferir quaisquer outros finais que ele tenha no YouTube.
Mas obviamente que existem exceções. Se por um lado eu tenho ojeriza pela mera noção de um remake de Silent Hill 2, o remake do primeiro Resident Evil é o meu jogo favorito da franquia. Mesma coisa acontece com alguns jogos nos quais eu acho que a adição de um ou mais finais serve para expandir a leitura que você pode tirar daquela obra. Alguns exemplos são os dois finais de Metro 2033, onde um dá um desfecho fatalista para trama e o outro é mais otimista, e a experiência mais recente que tive com Sifu. Você pode encarar como uma história de vingança, porém o dito true ending faz uma virada de 180° no arco do personagem.
Falando em arco de personagem… Silent Hill 2!
Esse talvez seja o melhor caso de um jogo que trabalha finais múltiplos de uma maneira mais complexa. Porque aqui os finais não geram apenas mudanças significativas na narrativa do jogo, que é o que acontece com Metro 2033 e Sifu. Em Silent Hill 2, a forma que você obtém cada final depende não de escolhas em momentos-chave da trama e sim de como você jogou. Portanto o tema de hoje será discutir os todos finais de Silent Hill 2, exaltando como utilizam a jogabilidade ao seu favor e como cada um leva a um arco diferente do protagonista, James Sunderland.
Não deveria precisar de aviso, mas a internet é a internet. Então, evidentemente, spoilers de Silent Hill 2 abaixo!
OS CAMINHOS PARA OS FINAIS DE SILENT HILL 2
Antes de pularmos para o final, ou melhor, os finais, vamos a uma breve recapitulação dos eventos de Silent Hill 2. Na história você controla James Sunderland, um homem que ainda sofre pela morte da sua esposa, Mary, falecida três anos atrás por conta de uma doença terminal . Um dia, James recebe uma carta da sua ex-mulher dizendo que ela o espera num lugar especial que eles tinham na cidade de Silent Hill. Confuso, James decide voltar até a cidade e lá encontra o lugar completamente transformado. A atmosfera está pesada, existe uma estranha névoa cobrindo as ruas e criaturas bizarras passam a atacá-lo.
Mais a frente James conhece outras pessoas que fugiram para Silent Hill: Angela, uma mulher atormentada por traumas do seu passado, Eddie, um rapaz paranoico, e Laura, uma garotinha de oito anos que parece alheia às anormalidades que acontecem pela cidade e que sabe de Mary. Eventualmente James encontra também Maria, uma misteriosa mulher que se assemelha muito a sua ex-mulher, mas saudável e se comportando de maneira mais “sexualmente sugestiva”.
Depois de vários contratempos, James finalmente chega no hotel de Silent Hill onde ele costumava se hospedar com sua esposa e finalmente descobre a verdade: não foi a doença que matou Mary, ele quem a sufocou com um travesseiro para libertá-la do seu sofrimento. A partir desse ponto, a história pode terminar de algumas formas diferentes
Silent Hill 2 tem três finais principais: Leave, In Water e Maria. Quando você inicia uma jogatina, existe uma pontuação invisível associada a cada um desses desfechos. Ao longo do jogo, certas ações dão pontos extras que aumentam ou diminuem suas chances de obter um desses três finais. Depois da última batalha, o jogo calcula a sua pontuação e determina qual final o jogador obtém.
Existem também dois finais extras que habilitam depois de você zerar o jogo pelo menos uma vez: Rebirth e Dog. Além disso, se você estiver jogando a versão Greatest Hits, existe um sexto final possível, UFO. O primeiro eu até acho que vale a pena discutir, já os outros dois são apenas piadas recorrentes da franquia. Mas para quem tiver curiosidade, este site mostra todos os finais de Silent Hill 2. Lá também você achará uma página falando sobre os do remake, que conta com mais dois finais originais, que eu só não vou linkar aqui porque, como já disse, o remake não importa.
Abaixo eu vou comentar de cada um dos finais principais e o Rebirth, descrevendo o que acontece e como você consegue obtê-los. Deixarei para discuti-los com mais detalhes no tópico seguinte, então se você já sabe dessas informações, pode pular.
FINAL #1: LEAVE
Como obter:
Sempre recupere a vida de James ao receber algum dano, ouça toda a conversa com Mary antes do último chefe, examine a foto e a carta dela mais de uma vez. Também evite de passar muito tempo com Maria, procure interagir o mínimo possível com ela e deixe que ela seja atacada por qualquer monstro no mapa.
Depois de enfrentar a manifestação de Maria, James tem uma última conversa com a memória de Mary. Ele mostra arrependimento pelo que fez e Mary pede que James siga com sua vida. Na última cena, vemos novamente o cemitério de Silent Hill que aparece no início do jogo. Laura e James deixam a cidade juntos, levando a crer que ele resolveu adotá-la, um desejo que Mary expressou na carta que deixou para a menina.
FINAL #2: IN WATER
Como obter:
Mantenha a vida de James baixa o maior tempo possível, examine a faca de Angela, leia o diário no topo do hospital e leia a mensagem no Neely’s Bar quando estiver no Otherworld. Também faça algumas coisas do final Leave, como ouvir a conversa antes do último chefão e evite interagir com Maria.
Mais uma vez, depois de derrotar o último chefão, James tem outra conversa com a memória de Mary. Apesar do remorso, ele não consegue se perdoar pelo que fez com a esposa. James pega o corpo dela, a tela fica preta e diz que agora entendeu o verdadeiro motivo de ter voltado a Silent Hill. Ouvimos o som de um carro acelerando. Enquanto Mary narra a sua última carta, vemos o fundo de um lago que indica que James decidiu se afogar para morrer junto da mulher.
FINAL #3: MARIA
Como obter:
Passe o maior tempo possível com Maria, não a deixe ser atingida pelo, visite-a no hospital e entre na sua cela de novo no labirinto. Ao contrário dos outros finais, não ouça a última conversa com Mary e não veja sua foto ou a carta, porém mantenha a vida de James sempre alta.
Em vez de Maria, James enfrenta a manifestação de Mary no final do jogo. Depois de derrotá-la, James retorna ao parque em que encontrou Maria pela primeira vez e ela reaparece. Ele a pede para voltarem para casa juntos e Maria aceita. Na última cena, vemos os dois no estacionamento indo para o carro de James e ela tosse, deixando implícito que Maria tem a mesma doença de Mary.
FINAL #4: REBIRTH
Como obter:
Depois de zerar Silent Hill 2, inicie novamente pelo New Game Plus. Ao longo do jogo você precisa coletar quatro itens especiais: White Chrism (Blue Creek Apartments), Lost Memories Book (Texxon Gas Station), Obsidian Goblet (Silent Hill Historical Society) e Crimson Ceremony Book (Reading Room / Nightmare Hotel).
Este final é obtido automaticamente ao reunir os quatro itens, não precisa se preocupar com as outras ações das jogatinas anteriores. James luta de novo contra a manifestação de Maria, porém não acontece um último diálogo com Mary. Em vez disso, vemos James num barco com o corpo de Mary e remando em direção a uma pequena ilha de Silent Hill. Ele revela que pretende usar as relíquias obtidas para entrar em contato com os deuses ancestrais da cidade e usar seus poderes para ressuscitar sua esposa.
Existem várias discussões sobre qual é o final canônico de Silent Hill 2, porém isso é uma enorme perda de tempo. Não digo isso apenas pela minha opinião que discutir cânon é burrice, mas também porque cada um dos finais cabe perfeitamente na história. É a grande beleza do roteiro desse jogo: a forma como a trama é construída permite que cada um dos finais funcionem perfeitamente com a trama. É uma qualidade de escrita digna de elogios.
Eu sou uma pessoa que prioriza narrativa acima de tudo – inclusive em vídeo games – só que, no caso de Silent Hill 2, não é ela que mais me impressiona. Fico admirado como cada um dos finais, com exceção do Rebirth, usa o formato da própria mídia para levar o jogador a um desfecho diferente. Esses finais parecem tão orgânicos não somente pelo texto, mas também porque são uma consequência direta da forma que você esteve jogando.
SILENT HILL 2 E OS CINCO QUATRO ESTÁGIOS DO LUTO
Já faz bastante tempo desde que eu zerei Silent Hill 2 pela primeira vez e vira e mexe me pego pensando de novo nos finais. Uma coisa que eu observei é como dá para associá-lo a cada uma das fases daquele conceito dos cinco estágios do luto. Com uma certa flexibilidade, obviamente, já que não dá para encaixar o estágio da raiva nessa minha teoria.
De qualquer modo, eu acho que essa ideia tem força uma vez que um dos traços que define o arco do James é ele tentando lidar com o luto da sua ex-mulher (e inconscientemente a sua culpa). Cada final representa o James sendo incapaz de superar a perda e se deixando sucumbir a um dos estágios anteriores. A exceção é o único final feliz de Silent Hill 2, Leave, que segundo a minha lógica simboliza a última fase do luto, aceitação.
Mas não vamos nos precipitar e começar do começo, destacando a jogabilidade no processo também.
O primeiro estágio é o da negação que eu associo com o final de Maria. Contudo não é sobre James negar o fato de ter matado a esposa, afinal é essa revelação que catalisa os últimos eventos da trama. O que ele tenta negar é a própria memória de Mary, chegando ao ponto de substituí-la por uma versão que corresponde 100% aos seus desejos.
Silent Hill 2 poderia levar a essa desfecho da forma mais simples possível com uma escolha sendo apresentada ao jogador sobre com qual das duas mulheres ele gostaria de ficar. Só que isso não é o bastante para te fazer sentir essa decisão. Sendo assim, o jogo te faz ativamente apagar a existência de Mary da cabeça do James e, por extensão, da sua enquanto incentiva a interagir mais e mais com Maria para concluir essa substituição.
Depois de Leave – porque eu tenho fraco por finais felizes – Maria é o meu final favorito de Silent Hill 2. O jogo todo te leva a pensar “coitado do James”, até mesmo depois de sabermos o que ele fez. Porque sempre existe aquela ideia ali que ele só matou Mary porque não aguentava mais vê-la sofrer. Nesse final a gente passa a vê-lo de fato como uma pessoa ruim porque não somente eliminou a esposa da sua vida como também nem hesitou em trocá-la por uma versão mais jovem, mais saudável, mais sexy. Por isso a ironia de que Maria vai sofrer da mesma doença de Mary tem seu impacto.
Depois disso pulamos a raiva e vamos direto para a barganha que seria representada no final de Rebirth. Particularmente eu não sou muito chegado nesse final, menos ainda do que os finais cômicos. Não porque eu não goste desse desfecho, acho até legal como ele adiciona mais camadas ao lore… nebuloso de Silent Hill. É só que acho desinteressante o caminho que leva até ele em comparação aos outros três finais principais.
É só pegar itens e pronto, algo muito tradicional e sem graça nesse contexto. Mas admito que é curioso ver que ele se comporta coincidentemente como uma barganha. Você dá quatro itens para o jogo e ele te entrega um final novo. Também não gosto tanto dessa conclusão para o arco do James pois a considero um passo para trás. Tem uma qualidade sombria que eu curto, porém em termos de personagem ela carece da mesma força emocional dos demais.
Então chega o estágio da depressão com o final de In Water e, por fim, a aceitação em Leave. Ambos os finais têm uma forte ligação entre si que é a conversa com a Mary depois de derrotar o último chefe. Nos dois casos o James reconhece que parte do que o levou a matar sua esposa foram suas próprias razões egoístas de não aguentar mais aquela vida. A chave está na reação de Mary ao ouvir a admissão de culpa.
Em In Water, ela reconhece que James está sofrendo pelo que fez e que isso já é o bastante. Ele vendo que não vai conseguir viver com essa culpa e resolve tirar sua vida também, acreditando que assim ele está pagando pelos seus pecados.
Por outro lado, em Leave, Mary faz uma observação pertinente. Se o que motivou James a matá-la foi o ódio que ele sentia por ela ter se tornado um fardo, por que ele estaria tão triste? A memória de Mary reconhece que James se arrepende de fato pelo que fez e por isso pede que ele continue vivendo. Porque nenhuma dos outros caminhos, se matar ou substituí-la por Maria, vai mudar o que ele fez. Essa é uma dor que James vai ter de carregar, não existe “saída fácil”. Não é nem exatamente uma redenção, mas sim assumir sua responsabilidade e tentar continuar como pode.
Novamente, o jogo poderia criar esses dois caminhos com uma escolha simples, perguntando se James deveria se matar ou tentar viver com a dor? Mas o que esses finais de Silent Hill 2 fazem com que o jogador tome essa decisão de uma maneira que incorpore os elementos da sua mídia, seja jogando com mais cuidado ou de forma imprudente. É essencialmente um role-play, a vida de James adquire valor se você a tratá-la como tal. E vice-versa.
Silent Hill 2 não conquistou sua posição como um dos maiores clássicos dos jogos de terror só por causa de simbolismo e um roteiro bem feito. É como tudo isso funciona de forma ímpar com a sua jogabilidade, levando a audiência a conclusões que refletem a sua própria maneira de jogar. É uma história que não funcionaria da mesma forma em qualquer outra mídia e por isso que sempre será uma obra que nos faz lembrar porque vídeo game é uma expressão artística.
Mesmo que os gamers ainda tenham dificuldades de tratá-la como tal.
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