Hell Clock, a história vs Hell Clock, o jogo

Imagem editada mostrando uma cutscene do jogo Hell Clock destacando o protagonista Pajeú em Canudos mirando com uma carabina ao lado de uma foto da gameplay mostrando o personagem atirando em cadáveres reanimados

Em 2023, escrevi uma crítica sobre Dave the Diver com o subtítulo: Um jogo que eu amei… pela metade. Acredito que seja auto explicativo, né? Enquanto eu adorava explorar os mistérios do Poço Azul, eu detestava cada minuto gerenciando o restaurante de sushi. Como não dá para negligenciar uma parte da jogabilidade em detrimento da outra, eu passei a falar que só gosto de metade de Dave the Diver. Contudo ainda é um jogo que eu curto, fiquei bem satisfeito ao zerá-lo e… *sigh* gostaria que fosse tão simples assim com Hell Clock!

O que complicou a situação é que a minha experiência acabou se dividindo entre Hell Clock como uma história e Hell Clock como um jogo. Mas não adianta eu ficar me precipitando sem o devido contexto!

Hell Clock é o mais recente jogo do estúdio brasileiro Rogue Snail, desenvolvedores da franquia de shooters Relic Hunter. Dessa vez o estúdio resolveu apostar numa mistura de mecânicas de RPG de ação com – supostamente – de roguelike e numa história que se inspira nos eventos Massacre de Canudos. Preciso destacar essa distinção. Não é a Guerra de Canudos, não é a Campanha de Canudos, é o M-A-S-S-A-C-RE de Canudos. É essa palavra que o jogo utiliza na sua primeira linha dos créditos iniciais e é a palavra que define o tom da sua narrativa.

Canudos foi uma das maiores (e literais) manchas de sangue da história do Brasil. Saber que milhares de homens, mulheres e crianças foram cruelmente degolados pelo exército da República, mesmo depois de se renderem, é o que nos fará entender toda a raiva que move o protagonista Pajeú, um dos grandes líderes dos guerrilheiros de Canudos. O sofrimento e a repressão que ele testemunhou são temas centrais que rondam toda a atmosfera de Hell Clock. Portanto, de novo: essa não é a história de uma guerra, é a história de um massacre.

Hell Clock começa oito anos após o massacre quando Pajeú acorda numa espécie de Purgatório na região de Quixeramobim. A escolha é oportuna. Foi nessa região em que nasceu Antônio Conselheiro, o líder religioso que levou os sertanejos até a região onde se firmou Canudos. Ao encontrar uma velha conhecida, Pajeú fica sabendo que a alma de Conselheiro foi levada por estranhas criaturas. Assim ele parte numa jornada para dentro do porão da casa até as profundezas do Inferno para resgatar o seu líder. Durante a sua jornada, Pajeú encontra outras figuras históricas conhecidas. Do lado dos guerrilheiros temos João Abade, que lutou ao lado de Pajeú, e do lado do exército temos o general Carlos Machado de Bittencourt.

Portanto a história vivida pelo personagem de Pajeú em Hell Clock reflete a história do Pajeú real com as devidas licenças poéticas. Há tantos elementos fantásticos quanto histórias. Às vezes de maneira bem explícita através dos personagens citados. Outras vezes de forma mais simbólica através de itens, habilidades ou os monstros que você encontra pelo caminho.

Luta contra o chefão do segundo ato em Hell Clock
Essa não é a última batalha. Quis manter o mistério para quem ainda não jogou

Existem até umas referências não tão claras para quem não conhece os pormenores do massacre. Por exemplo, uma das primeiras missões que você recebe no jogo é a de conseguir madeira para consertar as escadas que levam ao Grande Sino no segundo andar. Você encontra a madeira depois de enfrentar uma versão demoníaca de um homem descrito pelos personagens como o Comerciante. Se ele existiu em algum grau, não sei afirmar. Mas toda essa sequência é uma alusão a uma remessa de madeira encomendada por Antônio Conselheiro que serviu de estopim para as expedições contra Canudos.

Na sua jornada, Pajeú conta com a ajuda da relíquia mágica que dá nome ao jogo: o Relógio Infernal. Sempre que ele “morre” o relógio o traz de volta para a casa de Quixeramobim e Pajeú tem que reiniciar a descida. Além disso, se não alcançar o último andar antes do contador zerar você é mandado de volta para o início. Vale ressaltar que a campanha se divide em três atos, cada um em uma região diferente. Por sua vez, cada região tem três áreas que se subdividem ao todo em 21 andares. No final de cada área você enfrenta um chefão, como o citado Comerciante e o General Bittencourt que é o principal vilão do segundo ato.

No começo parece quase que impossível descer os 21 andares antes do limite de tempo acabar. Felizmente o jogo te dá alguns jeitos de contornar esse obstáculo. O tempo congela durante as lutas com chefões e nos andares em que Pajeú é atacado por três ondas de inimigos. Depois de derrotar um chefão você ganha um tempo extra e alguns inimigos do tipo Elite também dão um pequeno bônus se você tiver sorte. Por fim, também dá para estender o limite do Relógio Infernal através da árvore de habilidades do Grande Sino e liberar portais aleatórios de atalho. E se mesmo assim você tiver dificuldade, ainda pode apelar pro Modo Tranquilo. Ele desativa o limite de tempo e, na minha humilde opinião, tira muito do pouco desafio que o jogo tem. Ops, me precipitei de novo!

Como podem imaginar, a gameplay de Hell Clock pressupõe que o jogador terá que realizar diversas descidas até alcançar o último “andar”. Isso é incorporado como parte da narrativa, porque cada vez que você retorna a Quixeramobim os NPCs tem alguma nova fala que frequentemente referenciam os eventos pelos quais você acabou de passar numa das descidas. Entretanto, não esperem algo no mesmo escopo de Hades que tem tantos diálogos que quase parece infinito. Nesse sentido Hell Clock é mais contido e não é difícil esgotar todas as possibilidades de conversa na sua primeira campanha. A dublagem dá um show de interpretação, diga-se de passagem, salvo um caso mais pro fim que eu achei que o dublador escolhido não combinou com o personagem.

A princípio o roteiro do jogo não se beneficia tanto por esse vai-e-vem das descidas. A trama do primeiro ato é muito focada na busca pela alma do Conselheiro. A sequência termina com Pajeú encontrando com o infame Corta-Cabeças – que na história real foi o coronel Antônio Moreira César – cujo apelido é autoexplicativo. O segundo ato começa logo após derrotá-lo, liberando uma nova região.

Lá nós viajamos pelo Sertão em direção a cidade de Canudos e é onde eu acho que o jogo atinge seu ápice narrativo. Os sinais de destruição deixam claro que estamos revivendo o último ataque a Canudos que conseguiu derrubar a cidade. É também nessa sequência que vemos o Pajeú crescer como personagem através de flashbacks que mostram o seu passado e do povo canudense. João Abade ganha uma presença maior na trama, chegando até nos acompanhar por parte do mapa.

O personagem também ganha uma função de mostrar que além da raiva, Pajeú é movido pela culpa de não ter conseguido salvar seus irmãos de luta. Essa culpa vai ganhar mais força no terceiro ato, que é quando o jogo amarra todos esses elementos temáticos e nos escancara o que está de fato discutindo. Canudos se torna um exemplo que transcende o tempo, porém vou poupá-los de mais detalhes para terem alguma surpresa na história.

Acho que deu para ver que o segundo ato é a minha parte favorita do jogo, certo? Infelizmente também é a parte que eu comecei a perder o encanto pela gameplay. Não é que ela fique ruim, mecanicamente o jogo é bastante homogêneo do começo ao fim. O problema foi entender ali como o jogo estava mentindo muito para mim. Ok, isso foi um pouco dramático! Não quero dizer que Hell Clock age com desonestidade com seus jogadores e sim que ele acaba te induzindo a percepções erradas.

Quando eu falei para não esperarem algo como Hades, eu quis dizer também em termos de jogabilidade. Desde que eu vi o trailer de Hell Clock já esbarrei com dezenas de comparação, até mesmo vi o apelido de “Hades brasileiro” sendo jogado em alguns cantos. Até admito que existe uma inspiração estética e narrativa, mas para por aí. Se formos falar das mecânicas, Hell Clock está muito mais próximo de um Vampire Survivors – pelo sistema de upgrade das magias – e de um Grim Dawn – pelo sistema de constelação que beira o plágio – do que Hades. Porém a questão aqui não é com que jogo Hell Clock parece mais e sim essa ideia de vendê-lo como um RPG de ação roguelike sem as aspas necessárias.

Tenho para mim que essa foi uma decisão mais mercadológica porque existe um nicho de roguelikes e jogos com elementos de roguelike consolidado no cenário indie. Dandy Ace e Mana Spark são dois exemplos brasileiros que já comentei aqui no blog. E veja que fiz questão de destacar “jogos com elementos de roguelike” porque sei como esse é um dos debates espinhosos da comunidade gamer. Só a mera distinção de roguelike e roguelite é suficiente para gerar um bate-boca acalorado entre os fãs mais… apaixonados.

Para piorar existe a tal da Interpretação de Berlim, que eu condescendentemente chamo de Listinha de Berlim, que foi criada numa convenção de desenvolvedores na Alemanha em 2008. Longe de mim achar que eu entendo mais do gênero do que os profissionais da área – ainda mais quando eu tenho um completo desprezo por roguelikes – contudo eu não consigo levar a sério a Listinha de Berlim. São diretrizes muito engessadas (combate por turno, movimentação por grid, etc) que parecem ignorar como as concepções que temos de um determinado gênero evoluem com o tempo.

Por isso que eu prefiro muito mais a visão que minha amiga Coral tem sobre a definição de roguelikes. Para resumir, a Coral enxerga roguelike muito mais como uma filosofia de game design do que um gênero em si. Ou seja, ele não deve ser visto como um conjunto fechado de dogmas sobre o que seu jogo precisa ter e sim como um guia para produzir um efeito particular no público através da sua jogabilidade. Glenn Winchman, um dos três criadores do clássico Rogue, chega a defender algo nessa linha ao dizer:

Para mim, a característica quintessencial de um roguelike é que o computador cria um mundo para você explorar. A aventura tem que ser sempre diferente e o jogo tem que ser capaz de surpreender até seus criadores.

“A aventura tem que ser sempre diferente” , por mais que sou um tanto abrangente, define a experiência roguelike melhor do que uma sequência de termos como permadeath, meta-progressão e geração procedural. É por causa desse mote que eu tenho dificuldade de associar Hell Clock ao gênero. Pensemos em Diablo, ele não se promove como roguelike mesmo que sua jogabilidade siga a estrutura um dungeon crawler com mapas gerados proceduralmente sempre que você inicia um novo jogo. Hell Clock, por sua vez, nem isso tem.

A aleatoriedade se reserva apenas nos locais onde alguns baús, santuários e inimigos especiais vão aparecer. Porém o primeiro andar sempre será o mesmo primeiro andar, tal como o segundo, o terceiro, o quarto e por aí vai. Você luta contra os mesmos monstros que são o único desafio além do limite de tempo. Não existem armadilhas, rotas alternativas, puzzles, nada. Tudo que você precisa fazer é sair do ponto A e chegar ao portal que sempre estará no ponto B. Talvez você dê sorte e encontre um segundo portal no meio do mapa, contudo ele serve apenas para de transportar para uns andares mais a frente.

Nada muda em Hell Clock porque ele se pensa muito mais como RPG de ação do que ele se pensa como roguelike, ou “jogo com elementos de roguelike”. Fica ainda mais evidente no late game, representado pelo modo Ascensão, que eu considero mais uma das suas mentirinhas. O modo Ascensão parece algo que foi adicionado de última hora para adicionar algum fator de replay para os jogadores que terminaram a campanha principal porque ele está incompleto. E isso não sou eu dizendo, o próprio jogo admite isso num dos textos da tela de carregamento que diz que o late game está na fase beta ainda.

O modo Ascenção remove tudo referente a trama de Hell Clock para manter o foco apenas na jogabilidade. Você começa com todas as magias desbloqueadas, o sistema de constelação ativado, nenhum equipamento e uma nova árvore de habilidade no Grande Sino. Novamente você precisa passar por todos os mapas do jogo, porém dessa vez as descidas são limitadas. Você começa com sete, sete outras ao concluir o primeiro ato e mais sete depois do segundo. Se você gastar todas as suas tentativas, terá que recomeçar tudo do zero. Isso até faz parecer que Hell Clock terá uma carinha maior de roguelike caso você ignore que os mapas e os inimigos continuam o mesmo.

O modo Ascensão traz outras camadas de dificuldade. Nele o tempo do Relógio Infernal não congela mais durante as lutas com chefões e ondas de inimigos, então você tem que ser mais ágil. Também existe um medidor de nível de Inferno, que são pontos que você distribui numa árvore de debuffs (redução de resistência, menos ouro dropado, chefes com novos ataques) para tornar sua descida um pouco mais desafiadora. Para contrabalancear, o jogo também adiciona uma lista de recompensas que te dá pontos de constelação permanentes.

Contudo a maior parte dos debuffs está bloqueada porque os desenvolvedores ainda estão trabalhando no modo Ascensão. Como alguns jogadores apontaram, isso passa uma impressão que Hell Clock saiu como um jogo antecipado disfarçado. É uma implicância, afinal a campanha saiu completa, mas consigo dar um pouco de razão para eles. A minha sensação é que o modo Ascensão é só uma tentativa desesperada de adicionar um desafio que Hell Clock no geral simplesmente não possui.

A terceira e última mentirinha está quando, também na tela de carregamento, o jogo te fala que você não precisa farmar [fragmentos de alma] para avançar nele. Como complemento, outra mensagem diz que se você estiver demorando para derrotar um chefão talvez deva voltar para a casa de Antônio Conselheiro e repensar sua estratégia. As duas estão erradas! Você PRECISA farmar e você NÃO PRECISA mudar de táticas. Porque a real dificuldade de Hell Clock se sustenta apenas pelo quão forte Pajeú está em relação aos inimigos.

Existem ao todo sete formas diferentes de melhorar os atributos do personagem. Estou ignorando os boosts dos santuários porque eles se esgotam rápido. Três delas são temporárias e serão resetadas ao fim da descida: o upgrade das magias, os vestígios que inimigos dropam e as Bênçãos da Essência que você pode comprar em estátuas ao fim de certos andares. Já as outras quatro são permanentes.

Primeiro você pode coletar ou comprar equipamentos que ficarão com você até serem substituídos por um novo. Também tem um segundo inventário para artefatos que podem alterar tanto seus atributos quanto também os efeitos da sua magia. Depois tem a árvore de habilidades do Grande Sino e por último o sistema de constelações, ambos também melhorando seus atributos e lhe dando novas habilidades passivas.

A aparente dificuldade inicial de concluir as descidas não tem nada haver com a sua habilidade como jogador e menos ainda as estratégias que está usando. É só uma questão do Pajeú ainda não ser forte o suficiente. Vocês vão reparar que a maioria das vezes que morreram no jogo foi porque um inimigo te causou um dano massivo ou porque acabou o tempo do relógio. Uma vez quebrada essa barreira, o jogo fica ridiculamente fácil. Um mero acessório com efeito de vampirismo é o bastante para você quebrar a dificuldade de Hell Clock porque te permite aguentar qualquer dano até dos chefões.

O jogo só diz que não é necessário farmar porque não tem como você ficar numa área matando inimigos infinitamente. Contudo, você vai precisar coletar fragmentos de alma para melhorar seus artefatos e conseguir mais pontos para o Grande Sino. Não é a sua build e seus movimentos que fazem a diferença, é somente o quanto de dano o Pajeú tem. É por isso que Hell Clock teve uma das batalhas finais mais decepcionantes pelas quais eu já passei num vídeo game.

Essa não é a última batalha. Quis manter o mistério para quem ainda não jogou

Em termos de história, essa luta é o clímax da jornada de Pajeú. Você descobre o que aconteceu com a alma do Antônio Conselheiro e durante toda a batalha o grande vilão do jogo fica te provocando ao falar de como Canudos merecia ser destruída. Nesse momento o jogo quer que você sinta a mesma raiva que o Pajeú está sentindo e de fato eu a senti. Porém não pela história e sim por o quão entediante foi a luta. Ela demorou uns oito ou dez minutos, se não me engano. Longa, porém não árdua. Eu fiquei parado segurando o botão de ataque em cima do chefão com uma mão enquanto na outra eu segurava meu celular vendo algum vídeo no YouTube.

Aquele deveria ser um momento de celebração ao ver o arco do Pajeú se encerrando e a trama amarrando seus temas satisfatoriamente. Ao mesmo tempo que derrotar o último chefão deveria te dar aquele de sentimento de “porra, venci!!!” já que você levou dúzias de tentativas para chegar ali. Porém como ter uma catarse quando você percebe que nem precisa olhar para a tela para vencer aquela luta.

Então, por um lado temos Hell Clock, a história. Uma narrativa trágica que mostra como Canudos não foi a primeira e muito menos a última das muitas repressões violentas que marcam nosso país com sangue, ao mesmo tempo que mostra que existe valor em lutar contra toda essa opressão. Por outro lado temos Hell Clock, o jogo. Um RPG de ação com crise de identidade que logo se mostra repetitivo, entediante, pouquíssimo desafiador e que nem se esforça em te convencer que ele é aquilo que te disse que era.


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