Quando os primeiros vídeo games surgiram, história não era um componente tão importante assim. Pelo menos não em comparação com as outras mídias que já estavam consolidadas como cinema, literatura e HQs. Portanto, em títulos como Space Invaders, Frogger ou Pac-Man, a história era mais uma premissa que servia ao propósito de contextualizar a jogabilidade. Com o tempo isso mudou. Enredos se tornaram mais proeminentes nos jogos e estes passaram também a apresentar noções básicas de narrativa.
Nesse contexto, dois gêneros foram fundamentais para a evolução narrativa dos vídeo games, RPG e Aventura. Hoje em dia isso já é muito mais generalizado e você encontra exemplos de jogos com tramas bem desenvolvidas em qualquer gênero. Temos boas histórias em jogos de plataforma, como Little Nightmares, ou então em beat’em ups, como Fight ‘N Rage. Alguns deles, como é o caso deste segundo exemplo, tomam até escolhas curiosas na forma de contar suas histórias. Inclusive, por vezes o formato e as convenções da mídia funcionam em total benefício da narrativa. Não é mesmo, Undertale?
Contudo – e talvez seja o meu eu pessimista falando mais alto – ainda sinto que existem vários jogadores que subestimam muito a capacidade transformadora da narrativa em um jogo. Tanto que quando um título resolve dar um enfoque quase que totalmente narrativo ele recebe algum criticismo raso de “não ser vídeo game”. Walking simulator ainda é usado como um termo pejorativo e creio que nem preciso falar das visual novels, né?
Se bem que no caso delas eu até “concordo” que não são jogos,
porque vejo visual novels como seu próprio formato de mídia
que não precisa da validação de um monte de gamer com preguiça de ler.
Porém, ao mesmo tempo, temos aqueles jogos que são muito aclamados (alguns até demais) como The Witcher 3 e Red Dead Redemption 2 cujas histórias são igualmente exaltadas. Nesses dois casos temos jogos de escopo titânico. É um arco longuíssimo recheado de tramas, subtramas, personagens, eventos, diálogos, etc. Ao meu ver, a existência de títulos com tamanha proporção fez surgir um problema que é a supervalorização da complexidade, ou seja, achar que só porque a história tem muita coisa isso a faz necessariamente boa. A consequência é que jogos do passado, que possuíam diálogos mais curtos e tramas mais simples e diretas, tendem a ser vistos com um desdém irritante.
Eu odeio tal atitude em relação a jogos antigos – realmente antigos – por vários motivos, sendo o primeiro por achar que isso é uma tremenda ingratidão. Jogos do passado precisavam de histórias mais simples por uma questão de necessidade. Anos e mais anos de títulos que cruzam a casa das centenas, tanto em horas de duração quanto em gigabytes, fizeram o gamer esquecer de um detalhe importante de que memória não é infinita. Durante boa parte do seu tempo de vida, vídeo games tiveram que lidar, ou melhor, batalhar contra o limite de armazenamento.
Tengai Makyō Zero, um RPG que nunca saiu do Japão, precisou usar um chip de compressão especial para o Super Nintendo dado o volume de texto, sprites e músicas que o jogo continha. Boa parte da história de Vagrant Story precisou ser cortada por questões de armazenamento e tempo de desenvolvimento. Parasite Eve vinha em dois CDs, Final Fantasy VII vinha em três. Portanto, acho muito injusto julgar a simplicidade de alguns jogos sendo que desenvolvedores estavam se desdobrando para conseguir trabalhar dentro das reais limitações tecnológicas da sua época.
A segunda, e diria principal, razão pela qual eu detesto essa idolatria por complexidade é porque é simplesmente uma tolice. Uma história não fica inferior só porque é mais simples porque encher uma narrativa de detalhes, reviravoltas, personagens, diálogos não implica que ela ficará melhor. Pior, pode até deixá-la mais confusa, poluída, com muita firula e pouco conteúdo de fato. Vale lembrar que mais às vezes é menos. Sabe o que isso me parece? Um eco de comunidades otakus que frequentei onde tinha uma galera forçando o que era animê bom de verdade. Basta você trocar “adulto e sombrio” por “complexo” que o discurso é essencialmente o mesmo.
Assim eu enfim chego em Pokémon Red & Blue!
Se fizessem uma lista de jogos com as melhores histórias, duvido muito que Pokémon Red & Blue apareceriam nela. Ora, acho que nenhum jogo da franquia entraria. Eu até entendo e até certo ponto eu concordo. Não acho a história de Pokémon grandes coisas, contudo também não acho que isso seja um defeito. Não haveria benefício nenhum em fazer uma trama surpreendente e personagens cheios de camada quando o jogo se preza por ser uma aventura mais lúdica focada no relacionamento dos jogadores com os Pokémons. Pokémon Red & Blue é sobre um garoto num mundo em que criaturas fantásticas são utilizadas em duelo cujo seu objetivo é vencer uma competição. Isso está ótimo!
Mas queria adicionar um asterisco aqui. Porque esse texto não é sobre a defesa da história de Pokémon e porque ela deve ser simples. A palavra que eu usei foi narrativa e nesse caso eu acho que a de Pokémon Red & Blue é muito boa, principalmente considerando que era um primeiro jogo para um portátil tão cheio de limitações que nem mesmo tinha cor. Sendo assim, hoje eu quero discutir com vocês o porquê de eu achar que esses dois jogos – que na real são um – servem como ótimos exemplos de narrativa em vídeo games. Mas antes de entrarmos nesse tema é necessário fazer uma distinção:
HISTÓRIA X NARRATIVA
História e narrativa são conceitos que toda pessoa tem a capacidade de diferenciar por si só, mesmo que não seja formalmente. Mesmo assim eu acho necessário deixar as duas coisas bem separadas porque eu vejo muita gente se focando na primeira enquanto eu acredito que é a segunda que nos faz, de verdade, se conectar a uma determinada obra. Então vamos lá!
Quando a gente fala em história, estamos nos referindo a sequência de eventos que compõem um livro, um filme, uma série, uma HQs e, porventura, um jogo. Se pensarmos em obra no sentido literal para uma analogia, pense nela como o “material de construção” de uma narrativa. Esta, por outro lado, diz respeito à forma como aquela história será contada, levando em consideração as diversas escolhas que autor ou autores tomaram. É por isso que eu gosto muito do termo storytelling, pois ele já exprime com muito mais exatidão a ideia por trás do conceito.
Vale ressaltar que a história e a narrativa dividem alguns elementos, por exemplo, os personagens, os conflitos e o enredo. Porém cada uma faz um tratamento diferente destes. Para a história, o que interessa nos personagens é sua parte mais descritiva, como suas características, perfil, a relação deles com outros personagens, etc. Para narrativa, é o papel desses personagens dentro daquela história que importa. Além disso, a narrativa também irá abranger coisas como: ponto de vista, ambientação, temas e o estilo. Só este último poderíamos destrinchar em outro subconjunto de elementos próprios como o tom, a estrutura do texto e por aí vai.
Portanto, toda história tem alguma narrativa envolvida por mais simples que possa parecer. No caso específico de vídeo games, ela se mostrou presente até muito antes da gente sequer pensar jogos como uma mídia para se contar histórias. Não me refiro apenas a RPGs e jogos de aventura, podemos encontrá-la nos primórdios dos jogos de plataforma com Donkey Kong. Não o do Super Nintendo, falo daquele 1981!
Primeiro, vamos olhar para outro jogo de uns anos antes, Space Invaders. Nele tinha-se nada além de uma premissa de alienígenas invadindo o planeta e o jogador deveria defendê-lo com seu canhão. Não há nada para se tirar a mais do que isso. Em Donkey Kong, por outro lado, você tinha uma pequena história sendo contada por mais estranho que possa parecer. Ora, você tinha um vilão (Donkey Kong), um mocinho (Jumpman) e uma donzela em perigo (Pauline) e um enredo claro que une esses três personagens. Então, ainda que inconscientemente, você não joga apenas porque quer obter a maior pontuação. Ao mesmo tempo você quer resgatar Pauline das garras do Donkey Kong.
É óbvio que nesse caso temos um exemplo bem rudimentar do uso da narrativa. Porém ela está ali e não é à toa que Donkey Kong é citado como um dos primeiros exemplos de narrativa aplicada em vídeo games. Então agora agora vamos pular nove anos no futuro quando uma certa franquia vinha se estabelecendo no Japão há um tempo: Dragon Quest.
Em 1988 a série fechou o que hoje chamamos de a trilogia de Erdrick e, após uma pequena pausa, os jogos voltaram a marcar o Nintendinho com o clássico Dragon Quest IV: Chapters of the Chosen. Esse é um jogo que considero muito especial – ainda que o quinto que seja o meu favorito – porque ele marca uma tremenda evolução narrativa para a série. A história dos três jogos anteriores, ainda que tivessem suas particularidades próprias, girava em torno de um Herói que precisava reunir algumas relíquias para derrotar o grande vilão que ameaça o mundo. Mas sabe o que você faz em Dragon Quest IV? Você controla o Herói e precisa reunir algumas relíquias para derrotar o grande vilão que ameaça o mundo! Claro que essa é uma simplificação besta e intencional, há muito mais na história do jogo do que isso e há também muito mais na sua narrativa.
O jogo se dividia em cinco capítulos, sendo os quatro primeiros focando em um dos futuros companheiros do Herói que só aparece mesmo no quinto e último capítulo. Até então, esses personagens tinham pouca ou nenhuma caracterização nos títulos anteriores de Dragon Quest. No primeiro você nem mesmo tinha companheiros, no terceiro você os cria com um NPC na cidade inicial. Dragon Quest IV faz o jogador olhar a história por diferentes pontos de vista e criando personagens com os quais poderíamos nos investir para além de meras ferramentas que nos ajudam a cumprir um objetivo. Por isso que esse jogo se tornou meu exemplo favorito para mostrar que a diferença não é a história que você conta e sim COMO você a conta.
Por fim, vamos a outro salto no tempo para falar de Call of Juarez: Gunslinger (2013) e, aquele jogo que o inspirou narrativamente, Bastion (2011). O primeiro marcou presença no blog num texto antigo meu, A narrativa como qualidade diferencial, enquanto o segundo – que tecnicamente é o primeiro – apareceu recentemente num texto rápido.
Bastion é a história de um rapaz que encontra sua cidade desolada por um fenômeno chamado de Calamidade e junto de alguns sobreviventes tenta reverter os eventos que levaram a essa destruição. Uma característica curiosa deste jogo é que ele é todo narrado por um outro personagem, Rucks, então a história na verdade não é a perspectiva do protagonista. Isso causa um efeito curioso porque temos esse costume de assumir que o ponto de vista do jogo é o mesmo daquele personagem que controlamos. Então, de certa forma, é como se a gente escrevesse a história com nossas ações. Porém Bastion cria essa noção que tudo foi premeditado, já que essas ações são comentadas pelo Rucks, o que vai se amarrar perfeitamente ao fim do jogo. Pouparei dos spoilers, vejam por si mesmos.
Call of Juarez: Gunslinger faz algo mais ou menos parecido, porém o personagem que controlamos, o velho pistoleiro Silas Greaves, é também o narrador. Cada fase é uma das suas aventuras do passado que ele está contando para um pequeno grupo no bar da cidade. A diferença aqui é que Call of Juarez: Gunslinger investe mais no conceito de narrador não-confiável e traz isso para dentro da gameplay. Tem três momentos que eu adoro destacar:
- Durante uma sequência, Silas é cercado por atiradores e não tem nenhuma rota de fuga pela qual você possa escapar. Então ele menciona que olhou para o lado e viu uma saída e então a montanha simplesmente se abre, permitindo que o jogador corra por ela;
- Tem uma determinada fase que você precisa repetir três vezes consecutivamente, porque cada um dos personagens tem uma versão diferente do que ocorreu naquele dia;
- No meio de uma fase, uma das pessoas que está escutando as histórias de Silas cai no sono. Então, de sacanagem, ele diz que índios começaram a atacá-lo por todos os lados e os inimigos vão surgindo como passe de mágica. Quando o personagem acorda e fica confuso porque do nada apareceram índios na história, o Silas diz que só estava testando para ver se ele prestava atenção e assim os inimigos desaparecem.
Ufa! Acho que já tá bom, né? Com esses exemplos eu acho que já deu para ilustrar bem como a narrativa tem essa capacidade de transformar uma história e vem sendo explorada por jogos há muito mais tempo do que o gamer médio daria crédito. Até poderia tirar mais alguns exemplos da cartola, mas não quero que o texto vire um testamento tal como outros ensaios meus. Então chega de enrolação e vamos ao que interessa: Pokémon Red & Blue!
A NARRATIVA DE POKÉMON RED & BLUE
Reforçando o ponto que eu fiz lá no final da introdução, eu tenho sérias dúvidas que alguém colocaria Pokémon Red & Blue numa lista de jogos com boas histórias. Eu acredito até que algumas pessoas diriam que o jogo não tem história. Isso agora é irrelevante já que, como vimos, a narrativa é quem dá o charme. Mas aí tem outro problema porque eu também não acho que alguém diria que a narrativa de Pokémon Red & Blue é uma das melhores. Está tudo bem, até uns meses atrás eu também não achava até decidir rejogar Pokémon depois de muitos e muitos (pode por muitos mesmo) anos.
Existem alguns fatores que colaboram para essa impressão. Gamer tem uma péssima mania de olhar para o passado com condescendência e desdém. Também tem a ideia que eu falei lá no início que uma história (e narrativa) complexa é tomada como boa em detrimento das mais simples. Por último, porque Pokémon Red & Blue não tem muito interesse em contar uma história do jeito mais tradicional. Não que o jogo tenha uma narrativa mirabolante, está longe disso, mas porque ela não foca em coisas que, por exemplo, um Chrono Trigger faz.
Se pensarmos bem, Pokémon Red & Blue tem muito mais a ver com um The Legend of Zelda do que com qualquer outro RPG da sua época. Porque, reparem, o apelo do jogo enfatiza muito mais a exploração de um novo mundo repleto de criaturas fantásticas do que desenvolver uma trama ou um personagens. Essas coisas estão ali, porém é evidente que o real protagonista de Pokémon é o seu universo. Portanto, worldbuilding é o pilar narrativo fundamental do jogo e é nisso que ele mais se destaca. Ainda há espaço para debater outros pontos, como arco de personagem e qual o real enredo de Pokémon Red & Blue. Comentarei esses dois primeiros e assim deixa o worldbuilding para fechar o raciocínio com chave de ouro.
1. O ARCO DE PERSONAGEM… DO RIVAL:
Uma convenção que adotamos em jogos é que o personagem que a gente controla é o protagonista. Uma consequência desse pensamento é achar que por ser protagonista ele receberá algum arco. O primeiro pode ser verdade para a maioria dos casos, mas já o segundo não é bem assim. Porque, por vezes, o personagem que a gente controla nem é mesmo de fato um personagem. Nos jogos de Dark Souls, por exemplo, o seu personagem é um mero avatar para explorar aquele universo. A personalidade e história de fundo dele irão partir da sua imaginação.
Da mesma forma, em Pokémon Red & Blue temos um protagonista (que aqui eu vou chamar de Red) que não tem um arco de personagem. Dá até para argumentar que ao longo da jornada ele se torna um grande treinador de Pokémons, contudo dificilmente diria que isso é um arco. Ele apenas concluiu um objetivo que o jogo nos entregou no início, não há uma mudança real em Red. Por outro lado, temos o seu rival (que aqui eu vou chamar de Blue e não Gamer como eu coloquei nessa revisita). Ele sim passa por uma mudança ao longo do jogo que podemos caracterizar como um arco.
Pensemos primeiro em Red. Afinal, quem é Red? Sabemos que ele tem uma mãe e que quer se tornar um grande treinador de Pokémons e fica por isso mesmo. Agora, quem é Blue? Esse, por sua vez, a gente consegue ver com muito mais clareza a sua personalidade. Blue é representado como um garoto muito orgulhoso, cheio de si, ardiloso e que está disposto a fazer qualquer coisa para atingir seus objetivos. A todo momento ele tenta dificultar a vida de Red porque sabe que ele é seu principal obstáculo. Por isso que Blue deixa que escolha seus Pokémon primeiro para poder explorar a sua fraqueza, fala para a irmã dele não dar um mapa para o protagonista e está constantemente tratando-o com um ar de superioridade, tentando se mostrar sempre melhor do que ele nos seus duelos.
Essa arrogância de Blue se estende aos Pokémons que para ele nada são além de ferramentas para ajudá-lo a conquistar seu objetivo de ser o campeão da Elite Quatro. Não há mais nada que importa para o garoto. Tanto que quando o encontramos no prédio Silph Co., Blue diz que não foi ajudar a resgatar os funcionários e sim esperar que Red passasse por lá para desafiá-lo a mais um duelo.
Por isso que aquele diálogo entre ele e Red na torre de Lavender é integral para o arco desse personagem. A gente nem precisa daquela teoria de que um dos Pokémons dele morreu, acho que a motivação ali é bem mais simples. Ao visitar um lugar onde as pessoas vão lamentar a morte dos seus amados bichinhos, Blue começa a encará-los como algo a mais do que armas. A dor que ele vê nos outros treinadores e não-treinadores o força a entender melhor a relação que as pessoas têm com seus Pokémons.
Outro fator importante nesse arco é a humilhação de ser derrotado diversas e diversas vezes por alguém que Blue considerava inferior. Ainda mais no auge da sua glória ao derrotar a Elite Quatro. É aquele famoso choque de realidade que esse rapaz imensamente arrogante precisava. Contudo existe um problema nesse arco porque ele não se conclui totalmente dentro da narrativa de Pokémon Red & Blue. Somente na segunda metade de Pokémon Gold & Silver, ao reencontrar Blue em Viridian, é que vemos a sua transformação completa. Lá encontramos um rapaz mais amadurecido, líder do seu próprio ginásio e tendo um respeito muito maior pelos Pokémons.
E vejam que aqui o jogo utiliza a própria jogabilidade em benefício dessa narrativa. Claro que existe o incentivo prático de derrotar o Blue várias vezes para ganhar dinheiro e experiência, mas também entra essa questão que cada derrota é mais um empurrãozinho que você dá a ele em direção ao seu arco. Uma coisinha simples, alguns até diriam boba, mas que pra mim é – e não consigo resistir a tentação dessa piadinha – super efetivo!
2. A (REAL) TRAMA DE POKÉMON, A EQUIPE ROCKET:
Se quisermos simplificar as coisas a gente pode dizer que Pokémon Red & Blue é sobre um garoto que tem o sonho de se tornar um grande treinador de Pokémons, então ele viaja pela sua região vencendo todos os líderes de ginásio para conseguir as insígnias que ele precisa para poder desafiar a Elite Quatro e se tornar o campeão. Simples, porém injusto já que estaríamos eliminando da equação tudo que se relaciona com a Equipe Rocket. Mais do que um importante elemento de worldbuilding do jogo, ela representa o que eu considero a trama real do jogo.
Pensando que o mundo de Pokémon gira todo em torno da captura e treinamento desses monstrinhos fantásticos, é mais do que natural imaginar que haveria ao menos uma organização (e não somente criminosa) explorando-os. Mas o que eu mais gosto na Equipe Rocket é que ela desempenha um papel de antagonismo dentro da história meio que por tabela. Os seus interesses e nem os do Red estão em conflito, contudo as ações dos criminosos acabam criando obstáculos para o rapaz e assim que seus caminhos se cruzam. Tanto que a primeira vez que você se depara com o Giovanni ele te ignora, afinal o que um pivete poderia fazer contra a organização dele? Ah, se arrependimento matasse…
Logo a Equipe Rocket torna-se uma constante tão grande quanto o próprio rival. Quando você passa pelo Mount Moon quem está lá roubando fósseis? Equipe Rocket! No caminho para a casa do Bill quem está tentando recrutar treinadores? Um agente da Equipe Rocket! Ao chegar em Lavender quem você fica sabendo que sequestrou o Sr. Fuji? Agentes da Equipe Rocket! Você chega em Celadon e o que tem lá? Uma base secreta da Equipe Rocket! Quando você consegue entrar em Saffron o que encontra? A Equipe Rocket dominando o local! Aí, quando você finalmente volta para Viridian para conseguir a última insígnia, quem é o líder do ginásio? O líder da Equipe Rocket!
Porém não é o “poder” da repetição que torna a Equipe Rocket tão icônica no jogo e sim como cada uma das suas ações é perfeitamente alinhada com conceitos que Pokémon Red & Blue nos apresenta. Existe uma tecnologia para reviver fósseis de Pokémons? É óbvio que eles tentarão roubá-los. Um grupo de pessoas se aperfeiçoando em treinar e duelar com Pokémons? Claro que a Equipe Rocket tentará recrutá-los. Tem um local onde as pessoas tentam acumular pontos para conseguir prêmios? O mais natural é usar os Pokémons adquiridos pelo contrabando como esses prêmios. Todas as estruturas desse universo giram em torno da captura de Pokémons e tem uma empresa desenvolvendo uma ferramenta capaz de capturar qualquer um deles? Não tem como a Equipe Rocket não tentar por as mãos nessa tecnologia.
A Equipe Rocket não é tão importante para Pokémon Red & Blue apenas porque são os vilões da trama. Eles são A trama, funcionando em plena sintonia com todo o worldbuilding do jogo. É já que eu mencionei tanto essa palavra, está na hora de enfim falar sobre o grande destaque da narrativa do jogo.
3. O UNIVERSO DE POKÉMON RED & BLUE:
Deixa eu começar resgatando algo que falei muitos parágrafos (e minutos de leitura) atrás. Apesar de pensarmos em Pokémon como um RPG pela sua jogabilidade, a gameplay dele – nesse texto eu explico a distinção que faço – tem um quê a mais de aventura. Em outras palavras, para além de colecionar monstrinhos e deixar esses monstrinhos mais fortes, Pokémon também é sobre desbravar um mundo desconhecido. Você começa numa vilazinha do interior e progressivamente vai encontrando comunidades maiores, desde pequenas cidades até grandes metrópoles.
Portanto, da mesma forma que Red está expandindo o seu conhecimento sobre o universo que o cerca, você; o jogador, está descobrindo esse mundo junto dele. Pokémon Red & Blue até poderia se manter apenas no aspecto das lutas entre treinadores, porém ele já mostra vislumbres de pensar esse mundo socialmente falando. Porque seria fácil imaginar coisas como os Pokémons pré-históricos, a ideia de que alguns deles são alienígenas e também que existem alguns deles que são lendários. Isso é lore 101. Mas vejam, já nesse comecinho o jogo pensava em temas como abandono de animais, uso deles como armas de guerra, engenharia genética, caça ilegal, contrabando e, é claro, morte.
Nossa, falando tudo isso em sequência eu até me surpreendo o quanto esse joguinho largamente considerado como para crianças é bem sombrio. Claro que ainda existia a limitação da quantidade de texto que se poderia colocar no jogo, tanto que boa parte dos diálogos são dicas do funcionamento das suas mecânicas e não sobre o universo em si. Então o worldbuilding de Pokémon Red & Blue existe, porém não na mesma escala de outros RPGs e jogos de aventura da sua época.
Nesse contexto existem duas áreas muito importantes para se compreender o mundo de Pokémon: Lavender e a Mansão Pokémon. Lavender se tornou muito icônica pelo seu potencial de criar creepypastas, mas o maior valor que eu vejo nessa cidade é a realidade mais pesada que ela traz para dentro de Pokémon Red & Blue. A música sozinha já causa um efeito em você, já evocando uma atmosfera estranha que logo se torna melancólica quando você interage com alguns NPCs. Lavender faz você perceber que Pokémon não apenas “desmaia”. Pokémon sente dor, Pokémon sofre, Pokémon morre. Seja por maus tratos, seja vítima de caçadores como a trágica história da mãe do Cubone.
Com isso a gente pode voltar um ginásio atrás até a cidade de Vermillion onde o tenente Surge nos revela que Pokémons elétricos salvaram a sua vida na guerra. Por ser uma única linha de diálogo é fácil ignorar, porém as implicações dela são grandes e inclusive motivou toda uma teoria sobre um suposto conflito entre as regiões de Kanto e Johto. Apesar de não sabermos os detalhes, uma coisa é certa, existe muito mais nesse mundo do que apenas duelos. Existem, ou existiram, grandes conflitos bélicos e os Pokémons são ou foram utilizados como armas de guerra.
Ainda que se pense muito na franquia como uma série voltada para crianças, isso não impede os jogos de adicionarem temas mais sombrios para além das descrições da PokéDex (que poderia ser uma pauta toda a parte). Então como último exemplo eu uso a Mansão Pokémon na ilha de Cinnabar. A figura dos cientistas é sempre fundamental para o início da jornada do protagonista, contudo essa área nos mostra um outro lado dessa classe. Lendo alguns documentos, nós descobrimos uma série de experimentos terríveis que ocorreram naquele lugar a tentativa de clonar um Pokémon lendário que resultou no nascimento de Mewtwo e a eventual destruição da mansão.
O jogo poderia muito bem ficar apenas circulando nas regrinhas ou apontando para onde o jogador deveria ir, afinal ele ainda estava estabelecendo um padrão. Mas apesar da limitação de armazenamento dos cartuchos de Game Boy, Pokémon Red & Blue consegue construir um mundo suficientemente robusto e deixando muito espaço para a imaginação da sua audiência.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Depois de passar mais de 20 minutos divagando sobre Pokémon Red & Blue eu não posso vir aqui no finalzinho e dizer que não tenho intenção de convencer ninguém dos pontos que discuti. No máximo, consigo falar que não espero que você passe a colocá-lo na sua listinha de “melhores histórias dos games”. Eu só quis mostrar que o jogo tem mais méritos do que iniciar a maior franquia multimídia da história.
Com isso eu também tenho esperança que o texto consiga mostrar para aquela parcela gamer que mencionei no início como a narrativa tem, e sempre teve, seu valor dentro da mídia. Mas mais do que isso, o que eu busco é trazer um pouco mais de generosidade para jogos com histórias mais simples que por vezes são tratados com condescendência. Você não precisa de algo com o escopo de um Red Dead Redemption 2 para se ter uma narrativa envolvente e – de novo me rendendo ao trocadilho – super efetiva num jogo.
Enfim, já me estendi demais. Fica aí minha visão sobre Pokémon Red & Blue e sua narrativa e porque acredito que ela merece ser defendida. E aproveitem para jogar Dragon Quest IV: Chapters of the Chosen!
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Falando nos jogos com armazenamento limitado, eu lembro de ter ouvido uma vez sobre um jogo que teria um final bem legal, mas por conta do armazenamento, o final foi apagado. E pra não ter nada quando matar o boss final, deixaram ele imortal.
Não conheço essa história então não posso atestar nada aqui, mas é fato que armazenamento foi um calcanhar de Aquiles pros vídeo games durante um bom tempo.
Negacionista!!!
KKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKK esse me pegou desprevenido