Quanto mais eu conheço da história e da cultura do RPG Maker, mais eu percebo que só arranhei a sua superfície. Vira e mexe eu encontro uma nova joia dessa engine, me surpreendendo principalmente quando ela já existia há um bom tempo. Esse foi o caso de Space Funeral!

Primeiro foi o Bento, um leitor regular aqui do blog, quem me recomendou. Depois eu me deparei com ele no meio de um vídeo que me recomendaram do Breno Mancini. Sou uma pessoa que acredita no destino, portanto eu não poderia deixar esses sinais – fortes sinais – passarem batido por mim. Há algumas semanas eu finalmente joguei Space Funeral e, olha, eu deveria tê-lo conhecido antes. Não que seja um jogo fantástico, gameplay não é sua principal jogabilidade, mas sim pela discussão que ele abre.

Não vou usar um daqueles títulos hiperbólicos e um tanto pretensiosos de dizer que esse é “o jogo de RPG Maker mais importante da história”. Eu nem mesmo acredito que existe um candidato para tal posição. Mas acredito que dizer que Space Funeral é um dos mais importantes jogos saídos da comunidade de RPG Maker não é um exagero. Só é um pouco mais complicado entender o porquê disso.

O valor de Space Funeral é bem específico e por isso ele pode ser facilmente ignorado. A peculiaridade dele não fala com o grande público. Eu diria até que ele não está falando nem com o público, se consideramos “público” como “jogadores” nesse contexto. Space Funeral fala para uma pequena parcela desse grande universo gamer que é a comunidade de RPG Maker. Até dá para estender o seu comentário para além desse nicho, porém acho que seu efeito é maior com quem algum dia usou a engine para tentar criar seus joguinhos seja profissionalmente, estudo ou por pura diversão.

AFINAL O QUE É SPACE FUNERAL?

Primeira cidade de Space Funeral
A rima não foi intencional. Essa, por outro lado, foi!

O jogo em questão foi desenvolvido pelo irlandês Stephen Gillmurphy, em 2010, no RPG Maker 2k3. Gillmurphy é bem conhecido no cenário indie pelos seus “jogos esquisitos”, no bom sentido. Ele tem um estilo único, contrariando as noções mais convencionais de game design e por isso seus jogos comumente causam sentimentos diversos entre o fascínio e o estranhamento. Não sei se arrisco dizer que eles são uma expressão de um movimento avant-garde nos vídeo games, mas é bem apropriado.

Em Space Funeral controlamos um garoto, Philip, que parece estar sempre triste. Ele se junta a um cavalo feito de pernas, Leg Horse, e os dois partem numa viagem para encontrar a lendária Cidade das Formas. Lá eles acreditam uma forma de restaurar o seu mundo que parece ter sido corrompido durante um evento conhecido como a Grande Mudança. É só isso mesmo!

Para aqueles mais acostumados ao cenário mainstream da mídia *cof* *cof* gamer médio *cof* *cof*, os jogos do Gillmurphy podem não ser muito acessíveis. Seria como botar alguém que só jogou coisas como Deus Ex e Hitman para jogar Cruelty Squad. Space Funeral não é uma exceção, logo se você chegar nele com a mesma mentalidade que chega em outros RPGs, até mesmo aqueles feitos no RPG Maker, terá altas chances de se decepcionar.É um jogo curtíssimo – que é uma filosofia pessoal do Gillmurphy – e que não está muito interessado em se aprofundar nas mecânicas típicas do gênero. O combate em particular, mesmo tendo algumas excentricidades próprias, é tão irrelevante que esse poderia muito bem ser um jogo de aventura. Só que isso não importa porque Space Funeral funciona muito mais como um comentário do que como um jogo de RPG.


AVISO

Spoilers a frente porque não tem outro jeito de discutir esse jogo sem falar do final


MAS SOBRE O QUÊ É SPACE FUNERAL?

Philip e Leg Horse conversando num barco
Sobre os amigos que fazemos no caminho com certeza não é

Olhando para qualquer imagem de Space Funeral é notável o quanto os gráficos dele divergem bastante do padrão que encontramos no RPG Maker. Com certeza alguns os reduzirão ao simplismo de serem feios. Mas se você pesquisar outros jogos do Gillmurphy verá que isso é algo recorrente. A direção artística que ele costuma tomar é bem, digamos, “visualmente agressiva”. Com Space Funeral não poderia ser diferente, porém aqui tem uma motivação a mais do que apenas a visão do seu artista. Aqui essa estética bizarra do jogo é também um tema fundamental do mesmo.

Ao longo do jogo nos deparamos com diversas menções sobre como o seu mundo foi corrompido em algum momento no passado. O Leg Horse, por exemplo, é um dos poucos que parece ter alguma memória de como aquele universo costumava ser e por isso está sempre buscando um jeito de voltar a sua forma original. Depois de alguns percalços, eles finalmente chegam a famigerada Cidade das Formas, um local ainda mais distorcido que as outras cidades de Space Funeral

Lá, Philip e Leg Horse encontram uma entidade chamada Moon que lhes explica que antigamente ela costumava ser uma artista. Moon chegou a cidade em busca de inspiração, porém ao encontrar aquele lugar completamente perfeito ela se viu incapaz de criar qualquer coisa. Tudo parecia uma cópia barata das criações da Cidade das Formas. Moon se viu impotente diante daquela “beleza” e então decidiu corromper a cidade, e por extensão o mundo, para voltar a criar.

Moon, vilão do jogo
Bloqueio criativo. Sei como é…

Aqueles que, em algum momento da vida, tentaram fazer um joguinho no RPG Maker podem estranhamente se identificar com Moon. É, o vilão! Ou “vilão”, talvez?

Me lembro que a primeira vez que abri a ferramenta eu tive dois sentimentos: 1) ficar maravilhado pela possibilidade de fazer um jogo de RPG e 2) o desânimo em perceber que eu não conseguiria fazer sprites tão “bonitos” quanto os que eu via nas comunidades ou no próprio RTP do RPG Maker. Nunca fui bom com desenho, então pixel-art para mim é próximo de bruxaria. Além disso, quando comecei a tentar programar os eventos veio a frustração de não conseguir fazer sistemas tão bons quanto aqueles de outros RPGs que eu joguei.

Acredito que essa seja uma preocupação muito comum em qualquer um que tenta ser um maker, até mesmo quando a pessoa nem tem a pretensão de lançar seu jogo. A maioria dos projetos não vão muito além das suas publicações nos fóruns internet a fora. Aí que entra a tal importância de Space Funeral para comunidade de RPG Maker que eu mencionei.

Esse é um jogo que não tem qualquer preocupação em fazer as coisas “perfeitamente”. A maioria dos NPCs nem mesmo tem animações de movimento e quando o Gillmuprhy resolve animá-los não tenta deixar a movimentação fluida. O Philip tem um frame que ele simplesmente levanta os braços no meio do movimento de andar que causa uma estranheza todas as vezes que você repara nele no jogo. Os monstros que encontramos nas batalhas são todos feitos no Paint sem qualquer interesse nos detalhes. O Gillmurphy não se preocupa nem em fazer um sombreamento mínimo. Dá para visualizar ele apenas fazendo o traçado do monstro e então pintando com uma única cor com aquela latinha de tinta.

Space Funeral utiliza o sistema de luta padrão do RPG Maker 2k3, mas mantém sua estética única no design dos monstros
Nem isso eu consigo fazer no Paint

Essa mesma mentalidade se aplica na estrutura de Space Funeral, pois o jogo ignora vários elementos comuns não apenas de RPGs, mas como jogos em geral. Na própria tela inicial você já vê uma quebra de expectativa porque em vez dos habituais Start, Load e Exit você tem apenas Blood escrito três vezes. Quando você inicia o jogo não tem cutscene, nenhuma mensagem para dar qualquer contexto, nada. Você já assume o controle de Philip sem ter uma noção da trama ou do que diabos é para fazer.

Não demora muito para perceber o quanto o Gillmurphy está buscando fugir – e criticar – das formas e fórmulas que muitos jogadores e desenvolvedores julgam como perfeitas. Formas e fórmulas que os usuários de RPG Maker buscavam constantemente reproduzir nos seus jogos. Porém eu não acho que o autor estava tentando negar esses aspectos por completo. Até porque você vê a estrutura de um típico jogo de RPG ali dentro do Space Funeral. A própria Moon faz referência a isso no seu diálogo, dizendo que ainda consegue sentir os “ecos do mundo perfeito” naquele universo corrompido que ela criou.

Então se eu fosse resumir qual é o principal comentário que eu tirei de Space Funeral, ele seria:

MENOS FORMA, MAIS EXPERIMENTAÇÃO

Final de Space Funeral
Mesmo com o RTP, ou autor evita fazer um mapa perfeito

Não é nenhuma novidade que a maior parte das pessoas que se iniciavam no RPG Maker vinham com a intenção de recriar alguns dos seus jogos favoritos, principalmente ali dos anos 90. Heart and Soul, um projeto brasileiro queridinho e nostálgico meu, pega diversos sprites de diferentes franquias de RPG, em especial Treasure of the Rudras. O autor da histórica trilogia de Legion Saga replica muito do que ele gostava em Suikoden. E por aí vai. Ora, o próprio RPG Maker usa como base duas titânicas franquias de JRPGs: Dragon Quest e Final Fantasy.

Então havia uma grande dependência nesses projetos, dos mais amadores até os mais profissionais, a uma estética e jogabilidade que evocava os jogos que os inspiraram, porém nunca conseguindo atingir a mesma “perfeição” deles. É o drama que Moon vive em Space Funeral, por achar que nunca conseguiria fazer uma obra tão bela quanto aquelas que encontrou na Cidade das Formas.

Porém, ao mesmo tempo, dá para encontrar outros exemplos, alguns que antecedem Space Funeral, que decidiram se distanciar dessas fórmulas e experimentar com outros estilos, tanto na jogabilidade quanto na estética. Eu já mencionei aqui Ahriman’s Prophecy, um jogo de 2004 que foi por uma linha de RPG de ação na sua gameplay. Também posso citar um mais recente, Abraxas, um curto projeto feito para uma game jam que criou um sistema de alternar personagens análogo ao de Sweet Home. Também não dá para esquecer o histórico (e infelizmente obscuro) Vila do Nevoeiro que teve a ambição de trazer uma modelagem 3D para dentro do RPG Maker. Grimm’s Hollow (spoiler do próximo texto de RPG Maker) cria sua própria estética e ainda faz umas escolhas curiosas no sistema de batalha padrão do RPG Maker 2k3.

Nenhum desses quatro jogos que eu citei são exatamente perfeitos dentro das suas propostas, muito por conta da limitação tecnológica imposta pelo RPG Maker. Mas isso está longe de ser um problema. Saint Seiya RPG: Asgard Chapter é recheado de defeitos e mesmo assim é um clássico muito amado nessa comunidade. Eu tenho aqui um texto falando sobre Metamorfose S, um metroidvania que eu legitimamente acho fascinante.

Os defeitos, os problemas, as imperfeições desses jogos é o que os tornam interessantes. A qualidade vem de tentar fazer algo diferente, independente de quão bom ou não ficará o resultado final. É esse tipo de experimentação e desapego com formas e fórmulas definidas como o status quo que dão a alma a tais jogos. E é isso que Space Funeral busca incentivar.

Esse é um jogo feito para evocar essa qualidade tão especial do RPG Maker e que, se quisermos, podemos estender ao game design como um todo. Space Funeral é um lembrete que um artista deve estar buscando aquilo que ele quer, encontrar seu estilo, sua voz, seu caminho sem se preocupar em atingir um patamar considerado como ideal ou perfeito. A inspiração é sempre necessária, ninguém negará isso, porém tais obras não definem um padrão que precisa ser alcançado ou seguido. Experimente, arrisque, crie. É isso que Space Funeral grita em cada uma das suas formas distorcidas, porém belas ao seu modo.


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2 thoughts on “A importância de Space Funeral”
  1. Uau, Space Funeral é de abrir mentes. Ótimo texto e concordo com você, o que torna um jogo único são suas “imperfeições”.

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